domingo, 23 de fevereiro de 2014

Poesia para quem precisa (por Diego T. Hahn)


(Este texto foi publicado na edição número 1 da "Cesma Revista", no mês de novembro de 2013, e é parte integrante também da coletânea de contos "Histórias reais de amigos imaginários (e vice-versa)", a ser lançada no mês de março próximo)


- Mão na cabeça, vagabundo!

- Olha aí, capitão: caderninho de poesia...

- Preso em flagrante, hein, vagabundo!? Poesia, hein?

- Hã?... Eu estava aqui só escrevendo... não sabia que...

- Ah, não sabia que é o primeiro passo, malandro?? Não sabia que a poesia é a porta de entrada?

- Porta de entrada para o quê, chefia?

PLAFT!

- Ai!

- Tá te fazendo de desentendido, malandro? Vê aí o que tá escrito, Serjão... lê aí...

- Humm...

- Vê se ele cita a polícia aí...

- Não, capitão... não...

- Bom, vê se ele preparava então alguma rima pra polícia...

- Hum... tipo o quê, capitão?

- Hum... não sei... olha aí, Serjão!... sei lá... “polícia”... “polícia”...

- Milícia, chefia?

PLAFT!

- Ai!

- Tá chamando a gente de miliciano, é, malandro?

- “Delícia”. Achei aqui, capitão...

- Opa, olha aí, Serjão! Temos provas agora, Serjão... lê o resto aí, Serjão, lê o resto aí!

- “Tuas mãos pelo meu corpo... o mundo absorto... no teu seio eu navego... numa tarde de delícia”...

- Olha aí! Atentado ao pudor, no meio da rua!

- Sim, mas... e a rima, capitão? Tá faltando a rima...

- É verdade. Cadê a rima, malandro?? Onde ia entrar a rima aqui?

- Não tem rima... é um poema que...

PLAFT!

- Ai!

- Tá tirando a gente pra ignorante, malandro? Acha que a gente não entende de poesia, é?

- Não, não é isso... é que...

- Olha essa outra, capitão: “Teu corpo é meu castelo... meu porto seguro... quando ouço tua voz...”

- “Meu mastro fica duro”? Mais atentado ao pudor aí??

- Não. “O inimigo pede trégua”...

- O quê??

- É... por que não usou “égua” antes então?

PLAFT!

- Ai! Pô, por que essa agora?

- Nem sabe fazer poesia, vagabundo!... Ah, tamo perdendo tempo aqui... nem é poeta nada, Serjão...

Jogam o caderninho nele e vão embora.

Ele fica imóvel ainda por um tempo ali escorado na árvore, observando eles se irem.

Em seguida, pega o caderno e a caneta e volta a buscar a rima que tanto procurava o dia inteiro e que estava quase lhe chegando antes daquela abordagem...

“Fictícia?”

 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Sucessivas explosões (Em memória do Maestro)


A primeira coisa que me vem à cabeça quando lembro da coisa toda é aquela frase, surgindo voando, veloz: "Separada por um istmo!" e ecoando "istmo. ISTMO!".

Engraçado. Nunca fui tão bom assim em geografia, mas essa lição peguei bem: aquele tal lugar era separado do continente por um istmo.

Isso aconteceu lá pelos idos dos 90. Metade da década, talvez. De certeza, eu era guri. Lembro bem da minha confusa impressão, inclusive sem saber ao certo se tinha gostado ou não, que havia ficado tipo "Cara, que parada é essa??", tentando digerir por alguns dias após o espetáculo toda aquela função.
E talvez esteja tentando digerir até hoje.
Pois dizem que é isso o que a verdadeira arte faz com a gente, quando temos a sorte de nos depararmos com ela.

Depois o que mais marcou daquele curioso espetáculo daqueles dois estranhos artistas sbornianos (um com jubão eletrificado e olhar petrificado, o outro com sorrisinho canastrão abaixo do bigodinho, típico gerente de restaurante italiano), além daquela dancinha maluca do corpo travado com a cabeça chacoalhante - essa era perfeita para eu dançar - e de uma certa canção que falava de um triângulo amoroso familiar, foi uma versão feita por eles para "Meu erro" dos Paralamas do Sucesso.
 Devagarzinho, ritmada, à meia-luz, violão e acordeon. E, bem...
Esqueça Zizi Possi. Esqueça todos os outros covers dessa música.
Havia um quê de melancolia ali - e como é bela a melancolia quando inserida na medida justa em certos casos (bem, mais uma vez, a arte, a arte...)...
Mas havia também um quê de mágica ali. Era algo quase hipnótico.
E ainda é: sempre que lembro do espetáculo, antes mesmo de lembrar de todo o resto, automaticamente começa a tocar lá no fundinho dos arquivos da minha confusa memória aquela música...

Foi a primeira - e, agora sei, última - vez que os vi em ação.
Nossos caminhos infelizmente nunca mais se cruzaram desde aquela noite. Tinha curiosidade, agora mais maduro, adulto, por assim dizer, a respeito da impressão que eventualmente me trariam nos dias de hoje. É o meu primeiro grande lamento dessa partida precoce do Maestro, uma tristeza egoísta, eu sei, de nunca mais poder revê-lo em ação.
(Há uma piada na qual um portoalegrense pergunta para o outro:
- Já viste o Tangos & Tragédias?
- Umas 8 vezes...
- Por quê? Não gostou?).

Mas depois tem também, além, claro, da tristeza inerente à imensa perda de mais um ser humano, qualquer ser humano - que por si só já seria suficiente, como diria John Donne -, também a estranha, curiosa, tristeza, essa saudade antecipada, que nos ataca quando se vão determinadas pessoas que nem conhecemos intimamente, que pouco ou quase nunca víamos nessa vida, em quem quase nunca pensávamos, na realidade, mas por quem, devido a alguma característica peculiar, seu carisma, seu jeito de sorrir ou ser bom em algo, ou algo assim, nutríamos alguma espécie de admiração especial lá no fundo. E damo-nos conta disso tudo especialmente nesse momento de partida - embora, claro, talvez exista uma certa tendência a tudo isso se intensificar nessas horas de partida - quando já é tarde, e tentamos admirá-las e reverenciá-las em pensamento o máximo que podemos nessa despedida, como tentando correr atrás do tempo perdido, como tentando calcular a falta que elas nos farão.

Bem, creio que existem diferentes formas de luto, ou, melhor dizendo, diversas formas de tristeza advindas do luto.

Certamente não é tão profundo e avassalador como chorar por um parente ou amigo próximo. 

É uma tristeza mais sutil.

Nesse caso, creio que choramos talvez por amigos de outras dimensões, outras vidas, vidas nas quais imaginamos que tudo é melhor e mais belo que aqui e somos sempre felizes, tal qual numa ficção.
Ou choramos simplesmente por nossos super-heróis particulares, gente "especial" que nos mostra que aqui mesmo há mais entre o céu e a Terra do que supõe nossa vã filosofia.

Tal qual acontece com a identidade secreta de alguns dos nossos super-heróis, no entanto, às vezes pouco sabemos de suas vidas pessoais, até que um dia se vão - a gente costuma achar que durariam para sempre, envergando sua capa e sorrindo aquele sorriso também eterno, naquela pose altiva - e há sempre um quê de tragédia na morte de um super-herói.

Para pegar mais uma deixa do poema de Donne, sucessivas explosões afastaram a ilha-natal do Maestro do continente, tal qual dizia o antigo poeta inglês que acontecia quando uma pessoa, qualquer pessoa morria, era como se um pedaço de terra se desprendendo e o continente ficando menor e por isso não pergunte por quem os sinos dobram, eles dobram por ti, por mim, por nós, a tragédia é de todos nós. E é inevitável. Sucessivas explosões seguem e seguirão para sempre acontecendo, afastando outros preciosos torrões do continente.

Mas, ainda que não nos console hoje - e, na realidade, acontecerá algum dia? - , a verdade é que depois, muito depois do baque dessas tragédias, fica tudo o mais.
Fica a lenda. Fica a arte - nossa fonte de vida eterna, afinal. Fica a dança. Ficam os tangos, claro,. Ficam os tangos, com todo seu mix de lenda, teatro, dança, drama e música. Fica a música. Sim, fica a música.

Sim, inevitável hoje não ouvir aquela canção do Herbert voltando a tocar baixinho como aquela vez há tantos anos, tal qual eles a haviam transformado, à meia-luz, violino e acordeon, mágica como sempre depois daquela noite, embora, desta vez, certamente, também um tanto quanto mais melancólica.

E eu, eu sigo tentando digerir.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Jardins e versos em comunhão (por Auri Antônio Sudati - versão em inglês: Auri Antônio Sudati/ versão em italiano: Diego T. Hahn)


Aproveitando a deixa do post anterior, seguimos também neste flutuando através de poesia e línguas estrangeiras. Em mais uma colaboração com o seu Auri Antônio Sudati, aqui vai "Jardins e versos em comunhão", poema da autoria do seu Auri, no seu original em português e, logo abaixo, duas versões "estrangeiras" do mesmo: em inglês e em italiano (a parceria consta também da edição de novembro/dezembro do Jornal Letras Santiaguenses - para o qual o projeto multilinguístico é originalmente direcionado).


JARDINS E VERSOS EM COMUNHÃO      
 
Se um dia quiserem saber
quem foi essa mulher que semeou
poemas e flores pelos caminhos,
exortou cenários, distribuiu ternuras,
sorriu, cantou, mudou realidades.
 
Se te perguntarem também
quem foi essa mulher que encantou
o mundo com sua bondade,
vivenciou cada minuto de vida,
em harmonias, preces e bênçãos. 

Nunca digam seu nome, apenas
revelem que ela fez de cada verso
catecismo e guia no cotidiano,
e que, ao renascer em poemas e flores,
mesclou-se a jardins e versos em comunhão. 
  
 
GARDENS AND VERSES IN COMMUNION
(Versão em inglês por Auri Antônio Sudati)
 
If one day somebody asks you
who was that woman that showed
poems and flowers by paths,
she exhorted landscapes, she shared tender
moments
she smiled, she sang, she changed realities 
 
If somebody asks you too
who was that woman that enchanted
the world with her goodness
she lived every minute of her life
in harmonies, in preaches and in blessings 
 
Never tell her name, only
reveal that she made of every verse
a cathecism and a guide in her daily life,
and that, while being reborn in poems and
flowers,
she blended to gardens and verses in communion. 


GIARDINI E VERSI IN COMUNIONE
  (Versão em italiano por Diego T. Hahn)
 
Se un giorno volessero sapere
chi è stata quella donna che ha seminato
poemi e fiori per il camino,
ha esortato scenari, ha distribuito tenerezze,
ha sorriso, ha cantato, ha cambiato realtà  
 
Se ti chiedessero anche
chi è stata quella donna che ha incantato
il mondo con la sua bontà,
ha vissuto ogni minuto di vita
in armonia, preghiere e beatitudini. 
  
Mai dire soltanto il suo nome
Rivelate invece che lei ha fatto di ogni verso
catechismo e guida nel quotidiano,
e che, rinata in poemi e fiori,
si è mescolata a giardini e versi in comunione.