sábado, 22 de março de 2014

Leituras em stand-by: "A divina comédia", de Dante Alighieri (por Diego T. Hahn)


Bom, comecei a ler “A Divina Comédia” há, o quê? Cerca de dez ou doze anos?
Sim, acho que foi mais ou menos por aí...
Eu devia ter uns vinte e poucos invernos vividos então...


É, definitivamente, não sei o que eu tinha na cabeça na época...
Bom, seguinte, para quem não sabe do que se trata: é o poeta florentino Dante narrando em primeira pessoa a história, na qual, em parte dela guiado por outro lendário poeta italiano, Virgilio, visita inferno, purgatório e paraíso.

 
Tudo - claro, como não poderia deixar de ser - por causa de uma mulher! (assim como Dom Quixote por sua Dulcinéia, diz-se que Dante empreende sua aventura por causa de sua musa, Beatriz...).
O poeta narra pormenores dessas andanças, descrevendo minuciosamente o caminho trilhado pela dupla e – no caso do inferno, por exemplo –  as punições infligidas a mentirosos, que chafurdam na lava, gulosos, que são espetados por capetas sacanas, e assim por diante, de um modo tal que nos faz cogitar que o filho da mãe ou teve uma espécie de visão ou realmente andou por lá!... (entre outras punições, interessante aquela direcionada aos adivinhos: têm suas cabeças torcidas para trás, de modo a não conseguirem olhar mais para a frente, castigo imposto por alegarem saber o futuro – que "somente Deus sabe").

(A propósito de Dante, em visita por Florença, quando então ainda inexperiente no quesito visita a “Casa do/da...”, paguei 5 barões para conhecer a casa do mesmo... puro engodo, claro; como toda “Casa do/da...”, consta apenas de uma casa normal (poderia ter sido a casa de qualquer ser humano - do pizzaiolo da esquina, por exemplo - e jamais saberíamos), com algum material impresso afixado nas paredes contando a história do fulano ou da fulana – no caso, além de um pouco da história do escritor, obviamente também trechos da Divina Comédia para encher um pouco mais de linguiça)

Bem, de qualquer maneira tenho o orgulho de dizer – especialmente considerando-se que, tal qual acontece com o “Ulisses” de Joyce e “Em busca do tempo perdido”, de Proust, só para citar dois exemplos clássicos, nunca ninguém leu “A Divina Comédia” inteira – que consegui chegar até a metade do livro!
O “empecilho” na leitura da obra nem é exatamente seu tamanho (são razoáveis 337 páginas na edição pocket que tenho em casa, de 2004 da L&PM - que, diga-se de passagem, é em prosa, tornando um pouco mais acessível a leitura do texto, que originalmente é um poema), mas sua linguagem arcaica.

Apesar disso, no entanto – e do seu cunho, por alguns versos, meio religioso –, por algum motivo que me foge à razão já decidi que esse é um dos meus objetivos literários dessa vida:
Sim; um dia terminar de ler “A Divina Comédia”.
Talvez pelo fascínio que, não dá pra negar, a obra causa, no sentido de sua criação em si.
Talvez para não ficar com a sensação de ter desperdiçado em vão um precioso tempo de vida com a primeira parte da leitura...

Ou então simplesmente por, depois de ter penado pelo sétimo círculo do inferno e começado a vagar meio a esmo pelo purgatório, acreditar que mereço também um dia conhecer o tal do paraíso...
 

sexta-feira, 7 de março de 2014

Pelos sebos da vida: "O coração das trevas", de Joseph Conrad (por Diego T. Hahn)


Curioso Joseph Conrad ser o primeiro cara a ser resenhado duas vezes aqui no blog (a primeira vez, inclusive, foi na primeira resenha do De Letra, com Os duelistas). Curioso, no caso, porque nem é um dos meus autores preferidos - e, na verdade, só li mesmo esses dois livros do sujeito (ou seja, ele tem 100% de aproveitamento por aqui!).

Um dos livros com a quantidade de versões da capa mais legais que já encontrei por aí (embora esta acima esteja meio "fora de foco", foi talvez uma das mais interessantes que achei e assim decidi por incluí-la também na rela).
Curioso também, pelos estilos empregados em cada um, parecerem os acima referidos livros terem sido escritos por autores totalmente diversos (Os duelistas é, digamos, mais light, mais direto, sem tanto rebuscamento, ao contrário da densidade de O coração das trevas - se bem que isso possa se dever, claro, tanto ao conteúdo de um e de outro, quanto a questões referentes a edição, tradução, etc).

A respeito disso, vale dizer que Conrad era polaco e só foi morar na Inglaterra (posteriormente naturalizando-se inglês) lá pelos vinte e poucos anos, quando ainda não falava uma palavra sequer do idioma bretão... e, ainda assim - e talvez por isso mesmo -, superou-se e tornou-se um exímio conhecedor e artista daquela língua.
Embora o mais do que centenário livro - sua publicação data do longínquo 1902 - seja um clássico, foi mais também pela sua curiosidade que decidi resenhá-lo, por assim dizer, aqui (e por ser um dos últimos livos resenháveis que li), já que certamente, assim como Conrad, e apesar de um bom e envolvente livro, não ter se tornado um dos meus favoritos.

Inevitável, claro, mencionar que Francis Ford Coppola se baseou no livro para filmar Apocalypse Now, adaptando a realidade da obra de Conrad que se passava no Congo colonizado para a Guerra do Vietnã.

A respeito do filme (que, a propósito, na minha humilde avaliação, uma raridade nesse tipo de comparação, chega a ser melhor que o livro), embora Brando, interpretando Kurtz – de certa forma, mais uma vez o poderoso chefão –, ainda que só apareça no final, seja o eixo central do filme, e Martin Sheen - sim, o pai do sequelado Charlie, que, diga-se de passagem, protagonizou também outro clássico de guerra, Platoon - o protagonista, quem definitivamente marca presença, ainda que só apareça em determinado trecho – ao meu ver, igualmente, nas melhores sequências –, é Robert Duvall, com seu coronel surfista e suas frases épicas, tais quais “Vietcongues não surfam!” e “Adoro o cheiro de napalm pela manhã”.

 Obviamente revi o filme após terminar de ler o livro, para verificar se teria e qual seria a nova impressão sobre a obra cinematográfica (e o resultado foi realmente positivo e, entre outras coisas, foi interessante perceber a relação feita por Coppolla entre Vietnã e o Congo colonizado do livro quanto à justificativa de “ajudar a humanizar e trazer progresso à região” – típica ação que podemos dizer, inclusive, se perpetua e segue atual, já que tal justificativa – esfarrapada? – segue sendo usada em eventuais incursões imperialistas mundo afora).

Impossível, no entanto, não começar a ler o livro tendo já visto o filme anteriormente, já na expectativa de encontrar Kurtz. Não sei ao certo, mas talvez isso, ainda que sutilmente, tenha prejudicado (ou teria ajudado?) de alguma maneira a leitura.

O fato, de qualquer forma, é que é uma leitura densa. Quem narra a história é o marinheiro inglês Marlow, contando sua experiência no Congo, na época que a Bélgica colonizava o país africano. Encarregado de subir o rio (que, embora não identificado por Conrad, presume-se seja o rio Congo, também conhecido como rio Zaire) numa expedição a bordo de um precário barco para buscar Kurtz, o genial agente da companhia que explorava a região e que, diziam, havia enlouquecido no posto mais avançado da empresa e, apesar de seguir com suas enormes remessas de marfim, havia se tornado um problema.


E, no mais, em meio a tudo isso, temos canibais famintos, decapitações, rituais pagãos, frequentes e controversas menções ao tal cara lá no fim do caminho que não aparece nunca - até aparecer - e um barquinho a deslizar, no azul, azul do mar (bem, não tão azul, e muito menos mar, mas você entendeu - e eu não podia perder a deixa).

"Dei ordens para que a âncora, que havíamos começado a puxar, fosse jogada outra vez. Antes que ela parasse de correr com seu retinido surdo, um grito, um grito muito alto, como que de infinita desolação, soou lentamente através do ar opaco. E cessou. Um clamor de lamentação, modulado em selvagens dissonâncias, encheu nossos ouvidos. O fenômeno era tão inesperado que meus cabelos arrepiaram-se sob o meu boné. Não sei o que causou nos demais; para mim era como se a própria neblina tivesse gritado, tão repentinamente, e aparentemente vindo de todos os lados ao mesmo tempo, despertando aquele tumultuoso e triste clamor."

" 'Eles atacarão?', murmurou uma voz apavorada. ' Seremos todos massacrados em meio a este nevoeiro', murmurou outra. As faces contraíam-se de tensão, as mãos tremiam levemente, os olhos esqueciam-se de piscar"

" 'Pega elis', ele disparou, abrindo os seus olhos avermelhados e mostrando os seus dentes afiados - 'Pega elis. Dá elis pra nóis'. 'Pra vocês, hein?', perguntei; 'O que vocês fariam com eles?' 'Comia elis', falou secamente, e, apoiando seu cotovelo no gradil, olhou através da neblina com um ar de grande dignidade e uma atitude de profunda reflexão."

Críticos costumam dividir-se, questionando a mensagem central do livro, se uma espécie de libelo anticolonialista ou simplesmente uma representação racista da África - Conrad, que, diga-se de passagem, era também marinheiro, havia visitado e viajado pelo Congo na época da dominação belga.

Para se ter uma ideia da densidade do produto, procurando informações, críticas, etc, sobre o livro na internet, achei até mesmo tese de universidade sobre ele.
O que creio, particularmente, possa restar basicamente de questionamentos ao cabo da leitura, após todas as reflexões que já foram feitas e são conhecidas, e sem forçar lá muito a barra com maiores análises psico-antropológicas e tal - e talvez já forçando um pouco - , é:

- Precisamos mesmo chutar o balde, mergulhar fundo de verdade, abandonando todas nossas defesas - físicas e psíquicas -, ir realmente até o limite, para descobrirmos nosso real potencial – ou, em outras palavras, para simplesmente conhecermos verdadeiramente quem somos (e, por tabela, o que realmente nos rodeia nesse mundão de meu Deus) – ? (Como diria o Capitão Willard no filme de Coppolla, justificando sua presença no Vietnã: “Eu não saberia quem sou numa fábrica em Ohio!”)

- E seria o ser humano essencialmente selvagem por natureza (sendo que a nossa sociedade civilizada só consegue mascarar relativamente isso)?

 
 
E para não dizer que não dei voz ao principal personagem da história - Kurtz - aqui, eis sua mais curta e emblemática sentença, na qual ele talvez sintetize as respostas e resuma essa loucura toda:

"O horror... O horror".