sexta-feira, 31 de julho de 2015

Pelos sebos da vida: "Constantine - Pandemônio", de Jamie Delano (por Diego T. Hahn)


E ei-nos de volta aos quadrinhos.




Após algumas resenhas reminiscentes dos tempos de infância - Sombra, Wolverine, Hulk - abordaremos agora algo mais atual - na verdade, o mago inglês nem é tão "novinho", ele surgiu em 1985, numa história do Monstro do Pântano (ôpa, outro carinha que tá merecendo umas linhas aqui uma hora dessas!...), criado por Alan Moore (esta semana, por sinal, concluí uma baita história do Constantine, Sangue Real, na qual ele enfrenta um espírito maligno incorporado num membro da família real inglesa, e o mesmo espírito que supostamente havia sido o que teria incorporado um século antes no Jack, o Estripador, e, por - dupla - coincidência, ganhei de presente - atrasado - de aniversário nesses mesmos dias uma baita HQ também do Alan Moore, chamada Do Inferno - e que trata da história de quem?, de quem? - sim, dele, do velho Jack...) mas digo atual por eu particularmente só ter tido mais contato com o personagem há pouco tempo.

Há algum tempo atrás, por sinal, escrevi - em algum lugar - que o Sombra era meu personagem das HQs favorito. Pois tenho que me auto-corrigir a mim mesmo por conta própria (o superultrapleonasmo é proposital, camarada) e dizer que John Constantine está hoje, ao menos, no mesmo patamar do alter ego de Lamont Cranston.




São personagens muito interessantes, mas, não querendo compará-los também, pois são bem diferentes, mas já comparando-os, o Sombra é um cara mais "refinado", digamos, adepto de um linguajar mais elaborado e um modo de agir mais discreto, enquanto o mago inglês é mais sacana e sagaz nas suas observações e um cara mais povão: frequenta pubs, mija e vomita pela rua, etc.
Varzeano mesmo.

Por isso, hoje, me identifico mais até com o Consta.


E, entre tantas, uma história muito do caralho mesmo dele que possuo nas minhas fileiras é Pandemônio, escrita por Jamie Delano e desenhada por Jock (é, este é o pseudônimo do artista de nome Mark Simpson). 




É uma edição de 2010, comemorativa dos 25 anos da primeira aparição do personagem. 

E saca só o texto da contracapa: 

"Ardiloso, cheio de lábia, mago operário, punk zombeteiro... Um verdadeiro filho da mãe!

Em 1985, John Constantine surgiu nas páginas de Monstro do Pântano pelas mãos de Alan Moore. Desde então, o mago tornou-se um dos maiores anti-heróis das HQs, atraindo uma legião de fãs.

Agora, para comemorar o 25º aniversário de sua primeira aparição nos EUA, o roteirista original da série Hellblazer volta ao personagem. E levará John Constantine, o homem que conhece quase todos os infernos possíveis, a um dos poucos inferno que ainda não conhece:
a linha de frente da guerra."


A treta, no caso, é a seguinte (e eventuais spoilers - desde que não tão abusivos, tipo contando o final da trama - neste caso até que são bem-vindos, pois a história é bastante complexa - eu, por exemplo, como sou burro, precisei ler 2 vezes pra captar bem todos os detalhes e tals - e o amigo que resolver se aventurar nela talvez até me agradeça por esta introdução preliminar):


Constantine é atraído por um rabo de saia para uma cilada armada por uma dessas organizações terroristas internacionais (no caso, uma chamada "Serviço Secreto Inglês"), que o chantageia e acaba forçando-o a ir parar no... Iraque! Isso mesmo, entre os velhos e bons Tigres e Eufrates, na época pós-invasão da coalisão americana-inglesa-e-o-diabo-a-quatro - e o mais legal de tudo dessa história - que até poderia ser considerada um "libelo anti-bélico-expansionista-etc" - talvez seja exatamente que Constantine, encarnando o típico exército de um homem só, mas num contexto totalmente caótico que nem mesmo ele conhecia, chuta para todos os lados e não perdoa ninguém nessa trama sórdida.



Bem, mais do que isso não vou dizer - quem quiser, que compre a parada - são só 20 pratas (mas, como não, não ganho comissão nem nada da Vertigo, você pode ler online, baixar, etc, ou posso emprestar também o produto... desde que me devolva o mesmo e não faça como o calhorda do Diogão, que perdeu o meu 1984!... %#)¨&¨@!!).


Ah, só dando mais uma pincelada a respeito do histórico do personagem em geral, Constantine teve em 2005 uma adaptação para o cinema, que até achei divertida, mas que teve muitas críticas por parte dos fãs do personagem - como quase sempre acontece com alguma adaptação do mundo dos quadrinhos - , e uma das principais, veja você, é de que o Keanu Reeves, que interpretou o mago fanfarrão, tem cabelo preto, enquanto o Consta é loiro - para quem não sabe, o anti-herói foi criado por Alan Moore com inspiração na figura do cantor Sting.


                       É, então é mais ou menos esse o lance, no fim das contas:
                       "Every little thing he does is magic..." (não, não podia perder essa...)

sexta-feira, 3 de julho de 2015

"O sumiço das crianças-pardais" (por Antonio Neto)


Em mais uma parceria literária inter-regional, temos o prazer e a honra agora de publicar aqui no "De Letra" esta crônica do novo amigo e "irmão de ofício" das letras Antonio da Silva Pereira Neto, professor de Língua Portuguesa da rede pública de ensino do Espírito Santo (por coincidência, o cara vive numa cidade "xará", Santa Maria do Jetibá). Essa parceria nasceu após termos entrado em contato um com o trabalho do outro (e uma subsequente rasgação de seda - "cara, muito bom o teu texto!", "não, o teu que é, velho!!") através da recentemente publicada e distribuída coletânea dos premiados no Prêmio SESC de Literatura - Crônicas Rubem Braga - edição 2013, da qual tivemos ambos o prazer de constar - o Antonio com nada mais nada menos que o 3º lugar (exatamente com a crônica apresentada aqui) nesse certame nacional organizado pelo SESC de Brasília.
(Parabéns mais uma vez aí, Antonio! - e que nos dê a honra qualquer hora dessas de outros textos de sua autoria pintando aqui pelo blog!...)


Nasci e cresci numa vila periférica, proletária. Suas ruas sem calçamento liberavam poeira nos dias calorentos e muita lama nos chuvosos. Vira-latas misérrimos perambulavam de um lado para o outro, à procura de algum resto de comida.  As casas eram separadas por cercas precárias, feitas de taquaras, ripas e arame farpado. Pobres e pequenas casas sem reboco, sempre por acabar, sempre esperando por uma reforma ou ampliação que nunca chegavam...

   Os terrenos baldios proliferavam e emprestavam-se para abrigar provisórios depósitos de lixo e entulho. Outros tinham mais sorte e, cuidados por mãos laboriosas, tornavam-se hortas e plantações de milho ou mandioca. Esses terrenos baldios eram a poupança de famílias mais abastadas que os compravam e os deixavam lá, esperando valorização. Alguns desses terrenos, os mais privilegiados, serviam de playground para a criançada da vila. Viravam improvisados campos de pelada, território das lendárias partidas de taco, das batalhas antológicas com sementes de mamona, épicas partidas de queimada, brincadeiras de roda, campeonatos interplanetários de bolinha de gude, enfim, eram um universo paralelo de diversão naquela vida sofrida do subúrbio!

   Ao longe, do alto do morro, avistávamos a linha do trem: R.F.F.S.A. (Rede Ferroviária Federal S.A), que levava os exércitos de trabalhadores em vagões superlotados para trabalhar na capital; pais e mães que saíam de madrugada e só voltavam ao anoitecer, deixando aquela criançada aos cuidados de vizinhos samaritanos, tias, avós ou à própria sorte!

   Aquelas crianças encardidas, malvestidas, despenteadas eram os pardais da periferia: as crianças-pardais. Eu fui uma delas. Sem a beleza das crianças das propagandas da televisão, nossa única beleza residia nos sonhos que materializávamos em nossas brincadeiras. Tão pobres e esquecidos no mundo, tão cheios de imaginação!

   As crianças-pardais guardavam, em recantos secretos, uma gama enorme de tesouros: bolinhas de gude, figurinhas, tampinhas de garrafas de refrigerante, moedas fora de circulação, insetos exóticos e já mortos, e muitas outras preciosidades infantis.

   A felicidade era o nosso tesouro mais precioso, mas ainda não sabíamos... Ah, de quanta felicidade é feita a trama da infância! A nossa infância de crianças-pardais foi tecida por fios de ouro, saídos de corações maternos e paternos que nos zelavam e enfrentavam toda sorte de vicissitudes para nos sustentar, material e espiritualmente, e para nos garantir saúde e educação em tempos de angustiantes incertezas no Brasil.

   Fomos livres, fomos sonhadores: piratas, caçadores, astronautas, atletas, guerreiros medievais!  Tivemos ilhas de Mata Atlântica que resistiam no Alto Tietê! Conhecemos o rio Guaió ainda virgem! As raras bicicletas daquele tempo nos levavam para aventuras que ficavam além do tempo e do espaço! Descalços, desprovidos de beleza, de refinamentos, mas felizes!

   Hoje, quando volto para a minha terra, encontro ruas pavimentadas, congestionadas por automóveis e motocicletas nervosos, que me amedrontam! 

   Aquelas antigas e pequenas casas estão diferentes, ampliadas e melhoradas, são cercadas por altos muros, enfeitados com pregos, cacos de vidro e lanças pontiagudas. Câmeras vigiam a entrada das residências e dos comércios. O medo passeia pelas vias sem ter medo de nada!!!

   Os quintais quase que desapareceram. Nos portões, sempre trancados, aparecem cães enormes, donos de bocarras assustadoras. Tão diferentes dos frágeis vira-latas que conheci nos meus tempos de criança!

   Modestos condomínios de prédios suburbanos enfileiram-se, como florestas de aço e concreto, acinzentando o horizonte. Em suas janelas aparecem estranhas crianças, desprovidas da alegria natural e da feiura graciosa das crianças-pardais. Pobres crianças do século XXI, prisioneiras de apartamentos e quintais cimentados e gradeados, reféns da tecnologia e do medo. Têm uma vida cheia de tudo o que nunca tivemos nem ousávamos querer, mas não se parecem nem um pouquinho com as encantadoras crianças-pardais, das quais eu fui uma.

   Por onde voarão as crianças-pardais? Foram extintas ou ainda vivem no coração dos adultos que sobreviveram ao século XX?

   Na aquarela da memória, eu as vejo todas. Belas, eternas, pobrezinhas! Sofredoras, encantadoras, agrestes e destemidas crianças-pardais!