sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Pelos sebos da vida: "Reparação", de Ian McEwan (por Diego T. Hahn)


Bom, depois de quase dois meses de ausência aqui do espaço (não vamos dar desculpas do tipo "muito trabalho", etc; foi por vagabundagem mesmo - ao menos da parte de um, que tá morando de frente pro mar...), que ocasionaram furibundos protestos da parte dos incontáveis fãs do De Letra ao redor do mundo, resolvemos dar cabo das traças virtuais  aqui e voltar à ativa com esta resenha, que, na realidade, já estava engatilhada há um bom tempo - e só ainda não havia sido publicada devido ao excesso de trabalho. He. Eis aqui então a nossa reparação - obviamente não podia deixar passar o tradicional  e infame trocadilho deletrista - :


Cara, enquanto remava lá pela primeira parte da leitura, e por mais esperança que lá no fundo pudesse nutrir, jamais imaginaria proferir na sequência esta sentença... Que pusta livro!! 
 
 
Mas Reparação, do inglês Ian Mc Ewan (não confundir com o Magneto, Ian McKellen), ao meu ver, é mesmo um teste de paciência; você precisa se armar dela para enfrentar as primeiras cerca de 80 páginas, que passam num determinado ritmo, um tanto quanto lento, com altas doses de ensebação num aparentemente dia qualquer (que, porém, ao cabo do primeiro ato não se mostraria um dia qualquer e cujo ápice deixa claro que tudo vinha sendo minuciosamente preparado desde a primeira página) de uma família aristocrata britânica. 

O McEwan...
 
De repente, saímos daquela pasmaceira anterior, num salto de uma página, para o meio da guerra - a Segunda Guerra Mundial. 

E o McKellen.
 
Além do "ganho literário" por si, a empreitada valeu também pelo aprendizado histórico, digamos assim, tendo ficado instigado a googlear na sequência e captar mais sobre a Linha Marginot, da qual já tinha ouvido falar vagamente - mas não sabia ao certo do que se tratava, confesso minha ignorância... e confesso também minha ignorância antes dessa leitura a respeito do espetacular episódio da evacuação de Dunquerque, retratado no livro (os aliados já haviam se aventurado pelo continente antes do dia D, porém haviam sido dramática, humilhante e literalmente corridos à bala, tendo que voltar numa enorme procissão humana esfarrapada para a costa francesa onde se aglomeraram ao longo da praia esperando pelos navios de socorro e sendo acossados constantemente pela impiedosa força aérea alemã), também conhecida como Operação Dínamo.

   Foto histórica de gigantesca "fila de espera" dos soldados aliados pelos navios de socorro em praia do oeste francês.
 
A história começa, como dito antes, com um dia aparentemente comum, na propriedade de uma tradicional família inglesa, quando Briony, uma garota de 13 anos e que gosta de escrever (peças, histórias, etc), vê a um certo momento da tarde da janela do seu quarto uma cena que a deixa intrigada e desconcertada: sua irmã alguns anos mais velha, Cecilia, sob o olhar do velho amigo de infância (e filho de uma empregada da família), Robbie, tira saia e blusa e mergulha, de calcinha e sutiã, na fonte do quintal. A partir daí e de uma sequência de suposições por parte da garota e de novos fatos que vão surgindo no decorrer daquela tarde/noite, acontece algo que marcará o futuro de todos os presentes naquela ocasião.

                            Como já dizia Raulzito: "Keira... basta ser sincero e desejar profundo..."
 
Por incrível que pareça, embora com a eterna e clichê ressalva a respeito da relação livro/filme, a obra cinematográfica (abrasileirada como Desejo e reparação - no original de filme e livro, em inglês: Atonement) conseguiu ser suficientemente fiel ao original literário e ao mesmo tempo dar uma arriscada (especialmente no final - devo confessar, até mesmo, que, como sou meio burro, o final do filme me ajudou a compreender melhor o final do livro), ao meu ver com relativo sucesso.
 
Bem, devo dizer que, apesar do clima um tanto quanto soturno do livro, algumas partes me fizeram até mesmo dar umas boas risadas - evidenciando a catega do autor britânico também no fino trato com a arte da ironia em certas passagens -, como esta, na qual Briony, então crescida, caminha pelas ruas da capital inglesa trajada como enfermeira e com um mapa nas mãos numa folga do hospital onde trabalha:
 
"Cada vez que o desdobrava, o mapa corria o risco de se despedaçar. E Briony temia a impressão que poderia causar. Os jornais falavam de paraquedistas alemãs, disfarçadas de enfermeiras e freiras, se espalhando pelas cidades e se infiltrando na população. O que as caracterizava era estarem sempre consultando mapas; ao falar com elas, podia-se identificá-las atentando para seu inglês excessivamente bem falado e pelo fato de que desconheciam as tradicionais cantigas infantis inglesas."
 
Outras, bastante reflexivas (especialmente o trecho em negrito mais abaixo, que poderia servir, inclusive, para uma avaliação mais ampla do nosso atribulado cotidiano, com todas as suas complicações no relacionamento com o outro):
 
"Parada no quarto, aguardando a volta dos primos, Briony deu-se conta de que poderia escrever uma cena como aquela ocorrida junto à fonte e que poderia incluir um observador oculto, como ela própria. Imaginava-se agora correndo para seu quarto, pegando um bloco de papel pautado e sua caneta-tinteiro de braquelita marmorizada. Já via as frases simples, os símbolos telepáticos se acumulando, fluindo da ponta da pena. Poderia escrever a cena três vezes, de três pontos de vista; sua excitação era proporcionada pela possibilidade de liberdade, de livrar-se daquela luta desgraciosa entre bons e maus, heróis e vilões. Nenhum desses três era mau, nenhum era particularmente bom. Ela não precisava julgar. Não precisava haver uma moral. Bastava que mostrasse mentes separadas, tão vivas quanto a dela, debatendo-se com a ideia de que as outras mentes eram igualmente vivas. Não eram só o mal e as tramoias que tornavam as pessoas infelizes; era a confusão, eram os mal-entendidos; acima de tudo, era a incapacidade de aprender a verdade simples de que as outras pessoas são tão reais quanto nós. E somente numa história seria possível incluir essas três mentes diferentes e mostrar como elas tinham o mesmo valor. Essa era a única moral que uma história precisava ter."
 
Além de questões como culpa e perdão, estão em jogo ao longo de toda a obra, como resumido na análise contida na contracapa, "uma reflexão sofisticada sobre a natureza da literatura, seus poderes e limitações".

Enfim, o cara pode até não ser o outro Ian - o McKellen - mas sua leitura também é magnética (eu sei, eu sei, perdão!) e, como particularmente foi o meu primeiro do autor britânico lido até aqui, ao cabo desta missão literária ficou a curiosidade atiçada a respeito de outras obras de sua autoria; assim sendo, se alguém aí tiver uma sugestão de alguma outra coisa quentucha de Mr McEwan - que me parece mesmo ser um autor não tão "explorado" em  terras tupiniquins, pelo que andei conversando na sequência desta leitura até com alguns supostos intelectuais e/ou pseudo-intelectuais locais, que igualmente não conheciam nada ou quase nada do cara - , trate de nos dar esse toque* (ou mande mesmo sua própria resenha pra gente postar aqui). Gratos.
 
 
*Só, por favor, não venham indicar os filmes dos X-Men - que os trocadilhos e piadinhas sem graça fiquem restritos às postagens no blog... Obrigado pela compreensão!

 

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