quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Nossa Casa (por Juliano Lanius)


(E, voltando das cinzas do litoral catarinense, ei-lo: Mr. Lanius!)

A história de uma casa, dos habitantes que nela vivem e viveram e da relação entre estes moradores – que, mesmo residindo em épocas distintas, ainda assim, influenciam uns aos outros –, podem ser lidas nas marcas do tempo e na ação do homem sobre este lar. O canto da parede, quebrado por uma estante velha, na mudança de volta a casa da sua mãe. A mancha no tapete, deixada pelo cachorro Bob que já se foi. O armário da cozinha que não mantém mais a porta fechada, ou mesmo o bidê do banheiro que agora só serve de enfeite.

Tudo o que se encontra no interior de uma casa guarda um pouco da memória dos integrantes da família. A atual, que reside na contemporaneidade, e a póstuma, que habitou aquele lar em tempos já idos. Na casa da minha vó paterna, por exemplo, as estantes e prateleiras eram o suprassumo das recordações de como viveram meus antepassados. Ao abrir a porta inferior da estante, viam-se patas de animais silvestres empalhadas – lembranças das caçadas do vovô. Também era possível encontrar um abridor de garrafas gigante, trazido de Itu (SP), também pelo meu avô. Dizem que lá tudo é grande. Ao descerrar outra porta da tal estante, era possível olhar fotografias dos tempos de criança dos meus avós, em uma daquelas mini lunetas, sabem? Aquelas em que só era possível visualizar nitidamente a imagem quando direcionávamos o artefato para a luz. Lembram-se disso?

Contudo, o mais interessante, na época em que frequentava diariamente a casa da vovó, era sua máquina de costura. Eu ficava horas “pedalando”, assistindo a agulha subir e descer tão rápido quanto eu pudesse fazer girar aquela roda. Certa vez, quase perdi uma unha na máquina de costura da vovó. Concentrado em meus pensamentos, coloquei o dedo debaixo da ponta da tal agulha e baixei seu nível, com um toque sutil no pedal, até tocar a superfície da minha unha. Mergulhado no desafio de não furar meu dedo e, ainda assim, correndo o risco de fazê-lo, assustei-me com o barulho da vovó entrando no quarto e pedalei com força a máquina, o que fez com que a agulha penetrasse no meu indicador direito. Num reflexo impensado, puxei meu dedo para fora da máquina, deixando metade da unha na agulha. Pelo menos, restaram os outros 50%. Não contei a ninguém, pois sabia que vovó não gostava que mexessem em sua máquina. Afinal de contas, aquela geringonça foi o sustento da família por anos. Mas, no fundo, sei que ela adorava que falassem e tocassem nas coisas que pertenceram a sua família. Era a história passada adiante.

Todas as casas possuem detalhes que só aqueles que conhecem os 
cantos mais remotos da residência podem dizer o porquê de serem assim ou estarem ali. As casas e seus moradores possuem segredos entre si, os quais não revelam a ninguém. São confidentes, nas horas boas e nas ruins. As casas entendem seus moradores, e vice-versa. Só nós sabemos o cantinho mais fofo do sofá, ou qual almofada não faz doer as costas. Só nós sabemos qual panela não vai queimar o arroz e em quanto tempo o congelador leva para deixar aquela cerveja no ponto que gostamos. “Abre bem o chuveiro se não cai a luz!”, dizemos aos que nos visitam. Os moradores e suas casas sabem bem um do outro.

Contudo, há aqueles que não têm casa. Talvez o céu seja o destino fadado aos seus olhos cansados. Ainda assim, a rua não deixa de ser uma casa. Uma casa iluminada, durante o dia, por uma imensa luz chamada Sol. E mantida sob vigilância, na calada da noite, por uma guardiã chamada Lua. O Sol, nos dias frios, aquece a alma perambulante daqueles que não têm paradeiro. A Lua, junto com suas companheiras menores, as estrelas, ilumina o caminho incerto dos errantes. As ruas são os corredores da imensa casa onde habitam os desabrigados. As marquises, as praças e as vielas são os leitos destes corpos sujos e exaustos. Mesmo assim, tenho certeza de que ainda guardam nos farrapos as lembranças daquela esquina ou daquela rua, que lhes serviu de parada em certo momento da vida.

Enquanto isso, no abrigo de nossos lares, nossa cama ainda faz aquele rangido quando viramos de lado. Se estiver pensando em trocar a sua, lembre-se de que a velha, aquela que já tem seu corpo desenhado no colchão, já te fez bem. Deixe, então, que outro ainda faça proveito de suas derradeiras qualidades. Não a jogue ao vento simplesmente, ofereça a alguém. Proporcione um momento de felicidade e de pertencimento ao outro. Faça alguém sentir-se dono de sua própria cama, nem que seja por uma noite. Afinal de contas, quando não estivermos mais neste mundo, sem nossa casa, sem nosso lar, ou o que consideramos como um, restarão somente as lembranças. E que estas sejam felizes.


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