quarta-feira, 9 de agosto de 2017

"Paulo Sant´ana roubou minha crônica" (por Diego T. Hahn)


(Bem, se ainda persistem dúvidas quanto ao falecimento ou não do rock - cujo dia foi comemorado no mês passado e por conseguinte homenageado na publicação anterior aqui do blog - aparentemente as mesmas não se aplicam à lendária figura do jornalismo gaúcho citada no título deste texto, cuja passagem ocorreu também recentemente (na verdade, menos de uma semana depois) - embora certamente surgirão teorias de que ele está a viver em uma ilha secreta (como por sinal o texto abaixo aqui cogitava já há cerca de cinco anos atrás), ao lado de figuras como Elvis, Jimbo e Jacko... - , o que motiva-nos, portanto, a mais esta singela homenagem - com um texto que, na verdade, é um dos meus que menos gosto, mas, enfim, é o que tem mais a ver, e, de qualquer forma, o curioso do caso é que, após publicado no meu primeiro livro, "Flashbacks de um mentiroso", ouvi alguns questionamentos a respeito da trama, se seria verídica ou não... acho engraçado, me parece óbvio, mas sempre preferi aproveitar para fazer aquele "charmezinho" e deixar o "mistério", embora nunca imaginasse que aquilo pudesse mesmo ser um mistério, no ar... o que posso dizer mesmo - e essa parte é verdade (e curiosamente também forma uma espécie de "metalinguagem" com o texto em si) - é o seguinte: após a publicação do livro, lá em 2012, enviei, como bom autor iniciante desconhecido e com uma certa pretensão, alguns exemplares para alguns autores famosos - tipo David Coimbra, Martha Medeiros e para o próprio Paulo (olha a intimidade...) - e, alguns dias depois, não é que li numa coluna lá no fim da Zero um trecho, meio isolado do contexto, que falava mais ou menos da "facilidade daqueles que têm a sorte de ter talento e dos périplos a que se submetiam aqueles que não o tinham..."?... não sei, também não posso afirmar com 100% de certeza de que fora uma indireta para aquele meu artifício de divulgação da minha obra, não citava meu nome, meu livro, nem nada, talvez se referisse mesmo a qualquer outra situação ou pessoa, mas, ainda que ao mesmo tempo meio masoquista e pretensamente, devo confessar que senti - e ainda sinto - que aquela "esculachada" fora mesmo para mim e, assim, de alguma forma, também me senti um dia homenageado por Paulo Sant´ana! rsss).

Absurda história mesmo se desenrolou um dia desses, depois que um amigo veio comentar a respeito de uma crônica, segundo ele “fantástica”, que o colunista Paulo Sant`ana, de um jornal de grande circulação no sul do país, havia publicado nesse mesmo periódico na edição daquele dia. Segundo esse meu amigo, Sant`ana havia atingido o seu auge. O nirvana. A crônica das crônicas. Algo equivalente àquele anúncio do Chivas Regal, como diria Luis Fernando Veríssimo: “Chivas Regal. O Chivas Regal dos uísques”. Eu ainda não havia lido o jornal. Fiquei por conseguinte muito curioso, sendo o grande fã do Sant`ana que sempre fui. Caminhando um pouco mais pela rua e conversando com outras pessoas, percebi que todos falavam também sobre a tal crônica. “Genial” - vibravam. Polêmicas discussões pipocavam na rua, tendo como estopim as inspiradas ideias contidas naquela coluna lá na última página do jornal.
Não resisti, deveras curioso, embora fosse um belo dia de sol, e fui para casa verificar a tal crônica. Sendo eu um pretensioso aspirante a escritor, pensei em "sugar" alguma coisa de tão genial texto - ou, meio masoquista também, simplesmente me torturar de inveja.
Chegando em casa, ainda era manhã, preparei um belo café e puxei então o jornal. Dei uma folheada meio por cima nas demais páginas, esportes, quadrinhos, e logo cheguei na tão aguardada página. Tomei um belo gole do café e comecei a leitura. 
Pois qual não foi minha surpresa!...
Necessário se faz, para dar um adequado contexto à trama, regressar alguns dias no tempo. Mais precisamente um mês e quatorze dias. Pois cansado de penar atrás de uma oportunidade profissional no ramo das letras, procurando uma editora interessada em minhas crônicas, contos, poesias, devaneios ou até mesmo piadas - sim, eu invento também piadas, para desespero de minha namorada, Cláudia -, resolvi recorrer a um de meus ídolos na crônica gaúcha, Paulo Sant`ana. Enviei-lhe um e-mail. Apelei para o sentimentalismo barato - sincero, mas barato -, descaradamente. Contei um pouco da minha perambulação atrás de uma oportunidade, disse que estava cansado, desiludido com tudo, porque a gente não tem oportunidade de trabalho nesse país, a cultura é menosprezada no Brasil, sou teu fã número um... E por aí fui. Desesperadamente, em uma última cartada, por fim pedi uma chance para ele. Que ele ao menos lesse uma crônica minha que eu estaria mandando logo a seguir. Depois, se ele pudesse me recomendar para alguém que pudesse me ajudar, ou alguém que conhecesse alguém que pudesse... Bem, isso se tivesse gostado da crônica, é lógico... ou não também... e, enfim, mandei o  tal texto.
Eu, romântico que sou, realmente imaginei que ele me responderia alguma coisa. Nem que fosse algo tipo “Olá. Ok. Recebi tua crônica. Um grande abraço do Sant`ana”. Em consideração, ao menos. Sei lá. Mas nada... nem um “Sinto muito. Procure um emprego de verdade. Não vale a pena essa vida... sabe como é...”. Aí me frustrei de vez. Nem ao menos uma resposta confirmando a chegada do texto, pô! E o que mais me frustrava é que eu tinha realmente a convicção na minha cabeça que eu não era tão ruim assim... minha família, inclusive, gostava muito do que eu escrevia. Sempre me elogiavam e tal. Pensei em começar a suspeitar da sinceridade da minha família, mas agora era tarde. Eu tinha calhamaços de coisas escritas. Tinha me convencido que tinha um certo talento para o negócio. Mas não receber sequer um oi do meu ídolo foi realmente demais...
Não superei totalmente a frustração, é óbvio, mas nos últimos dias vinha pensando no que poderia fazer então da vida para ganhar dinheiro, para me realizar profissionalmente. Algo que eu não tivesse pensado antes. Tentar esquecer esse negócio de escrever. Tinha cansado de penar atrás de uma oportunidade e estava claro que as grandes corporações no Brasil não perdoam os pequenos e a gente tem que se virar como pode, mas chega uma hora que não dá mais... Cansei disso também. Desse papo. Ficar azucrinando os outros, posando de vítima do sistema, injustiçado. Estava na hora de deixar de ser tão romântico e cair na real. Arranjar um emprego "de verdade", como me diziam alguns amigos.
Pois foi nessa bela manhã, na qual eu caminhava pela rua e as pessoas falavam da crônica do Sant`ana, que eu havia decidido procurar um emprego, digamos, "normal". E foi exatamente nessa manhã que tudo mudou novamente.
Sentia eu um misto de surpresa, alegria, revolta... e talvez mais alguns sentimentos que eu não saiba descrever direito. Aí é que está. O Sant`ana sabe descrever! Eu, não... As palavras parecem fluir nas crônicas dele... nas minhas, não; nas minhas, parece que as coisas até se encaixam, mas que é tudo meio forçado... no fundo, no fundo, eu tinha noção disso; pô, não sou nenhum alienado. Tenho autocrítica. Daí a minha surpresa ao ver o que vi aquela manhã: a crônica que eu havia mandado para o Sant`ana estampada no jornal!!!!! A alegria vinha também desse fato. E a revolta era por ele ter assinado o texto com seu nome. Nenhum crédito para o real autor da crônica mais comentada de todos os tempos no Rio Grande do Sul: Eu!!!
Logo as ideias foram se assentando na minha cabeça. Concluí calmamente que aquilo era algo bom. Sem dúvida! Minha crônica estava estampada lá, para todo mundo ver! Quanto ao fato de não ter meu nome lá, imaginei que logo o Sant`ana entraria em contato comigo ou esclareceria na sua coluna nos próximos dias quem era o verdadeiro autor. Isso; com certeza! Paulo Sant`ana é um homem honrado, pensava eu, embora não o conhecesse pessoalmente. Só o via na televisão e lia sua coluna no jornal. Mas ele é um grande sujeito, sem dúvida. Apesar de gremista. Sempre defendeu os mais fracos. Sempre protestou contra a covardia, contra as injustiças, contra os abusos...
Mas, bem, o tempo foi passando e... nada. Nenhum contato. E o que era pior: a partir do dia seguinte à publicação da minha crônica, na coluna dele começaram a ser reprisadas crônicas antigas. Nenhuma menção à real autoria da última crônica inédita até então na coluna. O que teria acontecido? Bom, concluí eu, otimista como sempre, de repente o cara ficou doente e não está podendo escrever no momento. Pegou umas férias. Algo assim. E quando voltar vai esclarecer tudo. É, com certeza. Que bobagem eu me preocupar à toa!... Não teria eu por que duvidar da lisura de Paulo Sant`ana, um dos ícones da comunicação gaúcha, não é mesmo!?
Mas a verdade é que eu estava, sim, angustiado - e a angústia só aumentava. Todo dia, de manhã bem cedinho ia eu lá conferir a coluna do Sant`ana. Como aquele sujeito que vai conferir o resultado da Mega-Sena. Aquela esperança. Pensando no que fazer caso o prêmio saia hoje. Mas nada. E dê-lhe reprise... E, cansado daquela angústia, resolvi correr atrás do prejuízo. Mandei mais e-mails para o Sant´ana (também para o "Pablo", no mesmo endereço, mas só mudando o nome do destinatário - vai saber...) e para o jornal. Também já estava cansado daquela história de o pessoal rir debochadamente da minha cara cada vez que eu tentava contar que era eu o autor daquele famoso texto... Uns até fingiam tentar acreditar, mas sei que nunca lhes passaria pela cabeça realmente duvidar da honra daquele lendário jornalista. Provavelmente saíam depois pensando: “Pronto, pirou de vez, de tanto insistir nessa história de escrever...”. E nem adiantavam meus argumentos, como o do fato de depois daquele dia ele não ter escrito mais nada novo. Na verdade, nem eu mesmo acreditaria naquela história maluca se não estivesse diretamente envolvido nela... Mas que diabo afinal de contas estaria acontecendo?? Estaria eu enlouquecendo? Será que imaginei que tinha escrito e enviado para o Sant`ana aquela bendita crônica?? Ou teria sido tudo real e depois de ter publicado meu texto ele teria simplesmente sido abduzido por extraterrestres? Eu já começava a rir daquilo tudo... Não sabia mais no que pensar. Relaxei por uns momentos. Comecei a ver o lado surreal daquilo tudo. E, na verdade, o mais importante de tudo: minha crônica estava lá, no jornal, para todo mundo ver. Meu nome, não; é verdade. Mas minha crônica estava lá. Foda-se. Sim, é isso aí! Foda-se!...
Porém, não, aquela espécie de "catarse" era mais uma tentativa de me iludir; não, aquilo não bastava para mim, alguns minutos depois eu me dava conta outra vez. Paulo Sant`ana me devia satisfações. Ponto. E agora já não bastava um “Sinto muito. Procure um emprego de verdade. Não vale a pena essa vida... sabe como é...”, pois obviamente ele havia gostado da minha crônica! - e uma grande parcela do Rio Grande do Sul também, pelo visto...
Mas eu não sabia mais o que fazer. Eu não tinha respostas. Nem do Sant´ana, nem do... 
Até que o jornal um dia me respondeu. Acho que de tanto eu azucrinar os caras... A princípio, nem devem ter respondido meus e-mails por imaginarem se tratar de alguma brincadeira ou coisa de algum lunático. Talvez, aliás, eles ainda estivessem achando que fosse algo assim, mas assim mesmo resolveram responder. Talvez para se livrar de mim. E mais uma vez fui surpreendido pelo que eu lia ali na minha frente. Não vou dizer que a surpresa era tão grande quanto a de ver a minha crônica no jornal, mas foi também impactante - e, no fim das contas, só serviu para aumentar o mistério que já rondava minha cabeça.
Eles me disseram que Sant`ana... havia se aposentado.
Durante dias continuei enchendo o saco do pessoal do jornal, tentando obter respostas mais claras. Como assim, havia se aposentado? De repente? Por quê? E por que logo depois da minha crônica? - embora eles não acreditassem que era minha crônica...
O resto da população gaúcha também ficou estarrecido com tão repentina surpresa. Houve uma grande comoção por alguns dias, logo depois que a notícia havia estourado. Gente chorava, até mesmo. Mas para mim em especial ainda havia mais. E nada de resposta do sujeito. Aparentemente, aliás, ele havia sumido do mapa, comentava-se pelas ruas de Porto Alegre. Ninguém nunca mais havia visto ele na capital gaúcha. Nunca desisti completamente da ideia de ter aquilo tudo esclarecido e que enfim eu pudesse ter o devido reconhecimento, mas já me contentava com a possibilidade de ao menos receber uma resposta qualquer dele. O sujeito, no entanto, realmente parecia ter virado fumaça.
Meses se passaram. A última página do jornal foi aposentada, como se aposentam as camisas dos grandes ídolos de certos times, como a 23 do Chicago Bulls, antigamente usada por Michael Jordan, e que nunca mais poderá ser usada por nenhum outro atleta. Ninguém mais poderia escrever naquela última página. Em Porto Alegre, logo surgiu o grupo “Viúvas do Sant`ana”, que não se limitava a mulheres, como poderia sugerir o nome, mas abrangia todos aqueles fãs do colunista, que se reuniam para debater crônicas que ele havia escrito ao longo dos seus anos de jornalismo. Logo o grupo espalhou-se pelo interior do estado também e até em alguns outros estados do país.
Mas do Sant´ana ninguém nunca mais havia sabido realmente nada. O jornal se limitava a informar que ele havia se aposentado e que não tinha mais nenhuma informação. Eu, embora quisesse e até tentasse, não conseguia mais me concentrar para escrever. Sentava em frente ao computador, digitava algumas linhas, mas logo meu pensamento se perdia. Recorria então à máquina de escrever, com a qual me sentia um pouco mais à vontade. Nada. Eu até tinha umas boas ideias, mas não conseguia engrenar. Não ia até o fim. Parecia que havia algo me emperrando. E realmente havia. Até o dia em que chegou um cartão postal para mim.
O remetente se chamava Pablo e escrevia para mim do Caribe. Dizia que escrevia de uma rede, onde estava deitado olhando para o azul do mar. Ou do céu. Ele nem sabia mais. Os dois se confundiam de tão azuis. Era tudo que ele sempre quis. E me mandava um grande “obrigado”. Dizia que era a sua chance para acabar a carreira com chave de ouro. Não conseguia imaginar que um outro alguém que não ele poderia escrever aquilo. Foi mais forte do que ele, então: teve que publicar em seu nome. Mas tratou de esclarecer que não foi exatamente um acesso de vaidade. Foi algo mais forte do que isso, tal o impacto da minha crônica nele. A crônica tomou conta dele. Passou a ser dele. A crônica era realmente dele. E, depois dela, não teria como continuar escrevendo. Depois de atingir o pico, qualquer coisa que escrevesse o frustraria. Quanto a mim, disse que estava me prestando um favor. Se a crônica não tivesse sido publicada na sua coluna, apesar de muito boa, provavelmente não teria o reconhecimento que teve. Provavelmente, mesmo que tivesse sido publicada, mas com o meu nome, não teria o alcance que teve. Então, eu deveria ficar orgulhoso por ela, completava ele. Eu devia pensar nela como uma filha. Uma filha que foi longe, que ganhou o mundo. E no fim, todos nós havíamos sido ajudados: eu, ele e a crônica. Eu, por poder perceber que tenho realmente talento, apesar da minha romaria atrás de uma oportunidade não ter tido até então o efeito desejado. E por poder perceber também que às vezes o mundo é mesmo cruel, e ele não se referia à sua própria atitude, mas sim ao fato de que muitas vezes muitas coisas belas se perdem pelo fato de as pessoas que as criam ou cuidam delas simplesmente ainda não terem a devida influência, o devido reconhecimento. Finalizava me desejando boa sorte e que um dia eu estivesse lá, como ele, desfrutando das benesses que meu talento fatalmente me traria, independentemente daquilo que o mundo a princípio achasse.
Acabei de ler e fiquei por instantes ainda com uma impressão de vazio. A princípio, a resposta não havia me contentado. Então, ficaria tudo assim? Mas ao reler mais algumas vezes o cartão, passei a captar melhor a mensagem. Ou pelo menos resolvi me enganar, concluindo que havia entendido tudo.
De qualquer forma, enfim comecei a sentir a inspiração realmente voltando. Estava pronto para retornar à jornada atrás de uma oportunidade. Aquilo tudo, no fim das contas, havia me ajudado a ver que eu devia ir atrás daquilo que eu realmente queria e não de um “emprego de verdade”. O que eu realmente queria fazer da vida era o meu emprego de verdade. Paulo Sant`ana acabou sendo mais do que um ídolo. Virou meu mestre. Meu tutor. Meu guru.
Mas... bem... 
...por via das dúvidas, minha próxima crônica supostamente interessante vou enviar para uma avaliação é do Veríssimo, caramba!

quinta-feira, 13 de julho de 2017

O último Rei do Rock (por Diego T. Hahn)


(Para comemorar o Dia Mundial do Rock, que se celebra hoje, 13 de julho, libero em primeira mão especialmente para você, um dos cinco fiéis leitores do "De Letra", este meu texto, inédito para o grande pequeno público em geral, premiado no ano de 2014 na categoria Conto do Concurso Literário Felippe D´Oliveira. Espero que curta - de preferência ao som de um Ozzy ou Led!...)


-                   - ONE-TWO-THREE-FOUR!!!...
É, naquele tempo havia ainda uma meia dúzia deles vagando por aí. Estavam confinados em botecos fuleiros, onde tocavam para minúsculas plateias, que se concentravam especialmente no balcão do bar e eram formadas por uns tiozões de olhos caídos e alguns outros esquisitões. A pista, vazia. Nos cantos dela, ao lado dos pilares, ainda havia umas três ou quatro meninas, cabelos coloridos, piercing e tatuagem em alguma parte da anatomia, vagos resquícios das antigas gruppies. Mas elas não emprestavam sua beleza ao lugar por muito tempo e, assim que terminava o show, partiam para alguma outra casa de espetáculos, para assistir geralmente algum pagode ou sertanejo da vida. Ninguém conseguia mais tirar uma casquinha e restavam lá realmente só os malucos. O rock estava definhando. A cada dia que passava um roqueiro sumia e ressurgia no dia seguinte de chapelão de caubói, formando geralmente uma nova dupla sertaneja. Mas uma meia dúzia ainda resistia.
E, entre eles, Otávio, a lenda.
Pagodeiros e sertanejos não eram vistos exatamente como inimigos. Era “cada um na sua”, simplesmente. Os pagodeiros eram uma realidade com a qual se convivia já há tempos, era algo estabelecido. Mas o fenômeno sertanejo era algo relativamente novo e estava no seu auge, praticamente monopolizando as atenções do grande público. E assim Otávio os via à distância com seus salões e pistas abarrotados e não podia deixar de sentir uma pontada de inveja.
- Lembro sempre daquela vez que toquei pra 30 mil pessoas... – era uma história recorrente sua, de uma ocasião na qual, segundo ele, junto com outras bandas, tocara em um festival musical para um grande público numa cidadezinha do Mato Grosso, em meio a uma tour que fazia pelo país – veja você, no Mato Grosso!, um tradicional reduto deles... – dava ares épicos ao nostálgico relato na mesa do bar quase vazio após o show, rodeado por três bêbados e pelo barman, que aguardava impaciente a partida do derradeiro grupo.
Não havia nenhum registro impresso ou em áudio ou vídeo do tal evento. Ninguém lembrava de ter ouvido falar dele, também. “Era lá pelos anos 70”, tentava situar Otávio. Muitos suspeitavam da veracidade do fato.  Anos 70, ainda por cima... Otávio podia estar doidão e ter imaginado tudo... enfim..
Mas, no fim das contas, vai saber: nos contos de rock, assim como nos de fadas, tudo é possível.
Já nos tempos nos quais se passa esta nossa história, Otávio costumava tocar para públicos de trinta ou quarenta pessoas. Em um outro recente festival no litoral, conseguira a fantástica audiência de 300 cabeças.
Mas Otávio não desistia, seguia na estrada. Ia já para os seus sessenta anos de idade. Via-se como uma referência para os roqueiros mais jovens que ainda tentavam. “Dinossauro do rock”, imaginava sempre, orgulhoso, que se referissem a ele por aí. “O rei do rock”, era mais frequente, que, entre realmente reverente e ao mesmo tempo um tanto quanto sarcástico, voltasse sua atenção a ele o pessoal da geração mais nova. “O último rei do rock”.
E pensar que um personagem folclórico daqueles parecia extinguir-se pouco a pouco no escuro daqueles bares e ninguém percebia aquela perda! – àquelas alturas, ninguém lembrava a trajetória de Otávio; era como se ele tivesse começado nos dias de então, era como se fosse apenas mais um novato, ninguém tinha noção de tudo pelo que passara, as loucuras, aventuras e desventuras da sua vida de roqueiro... parecia que havia começado já no ocaso... era praticamente uma lenda perdida.
Ninguém, exceto, contudo, um estranho nerd estudante de jornalismo com ideais revolucionário-contraculturais - ou algo assim - já na casa dos seus quarenta e poucos, em um outro ponto distante da cidade, um sujeito que tinha há tempos um projeto de um documentário a respeito da vida de Otávio, embora este não conhecesse o cara e nem nunca tivesse ficado sabendo da ideia. O projeto, porém, por motivos dos mais variados, nunca saía do papel e, até o fechamento deste texto não se tem notícia que tenha acontecido e, o mais provável, é imaginar que ele tenha ficado engavetado para todo o sempre, condenando assim a história de Otávio a se perder nas brumas do tempo, entre resquícios de memórias bêbadas e “Aquela vez, no Mato Grosso...”, como seguia ele com aquela história. Parecia que era o que lhe dava forças para seguir adiante, aquela simples lembrança, e o passado um dia viraria futuro.
Mas a verdade é que o rock minguava nos bares e nos clubes. Mesmo os esquisitões, com suas camisas do Led, do Motorhead, do Nirvana, do Pink, e, claro, dos Ramones, pareciam estar desaparecendo. Bem, talvez alguns, que eram mais velhos – realmente, alguns eram até bem mais velhos que Otávio – tivessem mesmo passado desta para a melhor, cogitavam os barmen e as bartenders atrás dos balcões e os músicos em cima do palco, o que os angustiava ainda mais, pois aquelas camisas, pendendo no escuro enquanto o local vibrava com a distorção das guitarras, aquelas camisas eram como estandartes de guerra, eram como um símbolo da resistência, eram como uma fonte de energia e inspiração para os caras em cima do palco, assim como a lembrança do Mato Grosso talvez fosse particularmente para Otávio.
Eis que um belo dia, quando já não havia talvez mais do que três ou quatro bandas de rock na cidade, Otávio foi convidado para tocar novamente em um festival.
- Cara, demais! Lembro, inclusive, daquela vez, no Mato Grosso...
A coisa seria grande. Vários estilos misturados – revezados, contudo, em palcos distintos: seriam dois, um menor, onde tocaria Otávio, entre outros da antiga e iniciantes, e o maior, onde se apresentariam os artistas em evidência no momento. Não seriam trinta mil, como supostamente no Mato Grosso aquela vez, mas previa-se um público de cerca de cinco mil pessoas, o que já era um público e tanto para a cidade, coisa que há tempos não se via mesmo nas imediações.
Pois chegara o grande dia e Otávio apareceu com antecedência ao local onde aconteceria o espetáculo. Não havia ainda ninguém além dele lá. O sol ainda brilhava no céu, o que acentuava as rugas e olheiras do roqueiro, seu longo cabelo desgrenhado em contraste com suas ligeiras entradas no topo da testa, as tatuagens desbotadas no braço. Ele caminhava devagar. Estava cansado. Havia dormido mal. Sentia-se realmente velho então. Sentia, certo, um desgaste físico de uma vida. De uma vida de rock. Mas, mais do que físico também, sentiu-se velho mentalmente ao olhar para aquele palco onde se apresentariam os bambambans e imaginou toda aquela gente ali, aquela juventude gritando, pulando, os caras sorrindo seus sorrisos perfeitos e jovens também no palco, com suas camisas bem passadas e seus chapelões na cabeça. Sentiu-se, mais do que velho, pela primeira vez deslocado, em um ambiente daqueles. Sentiu que sua carreira estava realmente no fim – se é que já não havia acabado. “Dinossauro do rock”. Ora bolas, os dinossauros estavam extintos há eras!...
Entrou no espaço dos camarins, deslocou-se até o seu, uma simples salinha sete por cinco com paredes de madeira, uma mesa e quatro cadeiras no meio, um sofá no canto. Jogou-se no sofá e apagou.
Acordou com os rapazes da banda invadindo o recinto e, empolgados, chamando-o. Dormira. Dormira por horas. Acordava então zonzo. Custou a princípio a dar-se conta de onde estava. Bocejou. Havia agora águas e cervejas em cima da mesa. Puxou uma mineral no gut-gut, enquanto esfregava os olhos. Os rapazes o olhavam, rindo, e um pouco constrangidos.
- Pô, tá com sono, Otávio?
- Logo hoje, cara?
Otávio olhou para eles. Pareceu voltar então a real; voltar ao seu velho mundo.
- Não... – balbuciou, e, em seguida, firmando a voz, complementou, já mais confiante – Não... Não! vamos dar um show do c#%(¨&* pra eles lá embaixo, rapaziada!! – e, após respirar fundo e pegar fôlego, urrou um urro gutural, olhos esbugalhados, como algum guerreiro celta diante da possibilidade de uma boa morte em batalha diante do império romano que avançava imponente.
Os rapazes vibraram, o abraçaram, e foram acabar de se vestir e afinar os instrumentos.
“Se vai começar, vá fundo, vá até o fim...”, pensava consigo mesmo, parafraseando certo velho poeta roqueiro que lhe vinha à mente então.
Desceram ao seu palco e fizeram um baita show. Tocaram para minguadas cinquenta pessoas, mas não importava. Lá embaixo a galera curtia, sim, o show, via-se: balançavam as cabeças, e sorriam contentes, e um que outro levantava o mindinho e o indicador, segurando os outros dedos, e erguia o braço, como a aprovar o som e fazer uma solitária ode ao rock´n roll, e a certa altura uns cinco ou seis começaram a se bater amigavelmente uns contra os outros no meio da pista naquela outra espécie de curioso ritual roqueiro. Em seguida, um inclusive sobe ao palco e joga-se de peito lá embaixo, sendo seguro por outros três, e começando a surfar sobre a galera, não obstante a falta de maiores ondas, enquanto o baixista bradava “Sertanejos não surfam! Sertanejos não surfam!!” – e tudo aquilo era a verdadeira felicidade para Otávio.
Mas parecia faltar algo ainda.
Sim, haviam feito mesmo um ótimo show. Sim, a galera jogou junto. Mas faltava algo para o velho roqueiro. Faltava cruzar alguma fronteira.
Brindaram no camarim, tomaram algumas bebidas e ficaram papeando e rindo juntos e foi divertido, mas depois que os rapazes foram embora, Otávio permaneceu lá, jogado no sofá, pensando na vida. Ou, simplesmente, não pensando.
Voltou sua atenção à realidade quando, no palco maior, uma dupla de sertanejos despedia-se do ruidoso público. Os tais cinco mil deviam estar lá. Aqui somos os trezentos de Esparta, pensou, rindo. Começou a ouvir o som da banda que se apresentava então no palco pequeno. Mais alguns integrantes da resistência. Alguns garotos roqueiros. Idealistas. Tsc, tsc, tsc. Não durarão muito. Ninguém dura muito hoje em dia, pensava Otávio. Mas sentia um extremo orgulho deles ali naquele momento. Sentia um orgulho paternal. Sim, sentia-se mesmo como uma espécie de pai deles.
E, como pai deles, precisava oferecer-lhes proteção. Estava velho, sim, mas, não, não estava acabado. Recém havia mostrado aquilo, exatamente naquele mesmo palco, alguns minutos atrás.
Foi então que vislumbrou tudo. Havia um intervalo no palco maior. O público, ensandecido, permanecia lá, em pé, vibrando, gritando, chamando pela próxima atração – sertaneja, provavelmente; ele não sabia ao certo, mas, sim, devia ser...
Cinco mil pessoas. Aquele enorme palco. Sim, agora ele entendia:
Aquela era a fronteira a cruzar.
Ajeitou-se no sofá. Suas energias se renovavam. Viu-se saindo do camarim, guitarra em punho, cruzando o corredor escuro e entrando, solitariamente, naquele palco iluminado.
Aquele mar de chapéus de caubói lá embaixo. Olhares petrificados nele. Era como o forasteiro cavaleiro solitário invadindo o saloon nos faroestes de antigamente. Mas, gostem ou não gostem, eu estou aqui. Essa era a mensagem.
Arrancaria um solo distorcido de sua velha parceira – não, não tocaria No rancho fundo em homenagem aos “inimigos” da sua época, bradando “Vocês querem sertanejo? Pois ISTO é sertanejo, meus amigos!!”, como você pensou  –  e, olhos fechados, dedicaria aquele seu sacrifício aos deuses do rock. Haveria, a princípio, um silêncio respeitoso na plateia. Depois a mesma se dividiria. Alguns reclamariam, talvez, que não era o que esperavam, não haviam pagado por aquilo, por aquele ritual quase pagão...
Outros, contudo, começariam, no fundo, no fundo, para suas próprias surpresas, a pouco a pouco se sentir bem com aquela vibração, com aquela energia...
Logo ele visualizaria, entre surpreso e divertido, uma meia dúzia de chapéus de caubói se chocando amistosamente no meio da pista, algumas mãos erguidas aqui e ali com seus mindinhos e indicadores imponente e desafiadoramente eretos, alguém levantaria também a camisa xadrez e mostraria embaixo dela a camisa preta do Metallica, e, enquanto ele ainda solava como hipnotizado, o ápice, com um sertanejo subindo ao palco e voando para ser seguro pela multidão e contrariar o baixista da banda de Otávio.
Você sabe, nos contos de rock tudo pode acontecer...
Ou, claro, podia dar tudo errado e ele ser implacavelmente vaiado, a maior vaia de sua vida, e ter garrafinhas de plástico de água jogadas aos montes na sua cabeça... fazia parte correr os riscos...
Fosse como fosse, Otávio, elétrico, como num choque, levantou-se do sofá e catou sua velha guitarra vermelha.
Era sua tão aguardada cruzada final – e, no fim das contas, depois de todo sofrimento, todas as privações, será como roubar o fogo dos deuses, e é a única boa briga que existe, disse para si mesmo, novamente parafraseando aquele velho poeta roqueiro de outrora, que insistia em lhe vir à mente naquele momento.
Afinal, como se diz, rock não é só um estilo musical... rock não é só pancadaria na batera e guitarras distorcidas...
Rock, meu amigo... Rock é atitude!

Oh, yeeeeeaaah!


quarta-feira, 21 de junho de 2017

Pelos sebos da vida: "Mantenha o sistema/ A flor da Inglaterra/ O vil metal/ Moinhos de vento", de George Orwell (por Diego T.Hahn)


Buenas; após uma pequena pausa de férias (de cerca de o quê, meio aninho só!??...), graças a insistentes manifestações de nossos ardorosos 3 ou 4 (milhões de) fiéis leitores we´re back, man! (Prometendo inclusive manter essa fantástica e frenética frequência, com UM POST POR SEMESTRE!! Que tal??? Hein? Hein??) "Eles" não vão conseguir nos calar! (Essa é boa para instigar a "audiência", criar uma polemicazinha, sabe como é... "eles" quem? Quem são "eles"?? Naquelas...) Mas é, como diria o velho filósofo aquele, vocês vão ter que nos engolir! (Embora meu sócio aqui do blog, J., provavelmente nem esteja a par - seja da nossa parada como desta retomada, como creio mesmo que esteja é cagando para isso aqui e nem lembre mais do velho "De Letra" em si... - pronto, aproveitado o momento também para uma pequena e indireta - quase subliminar - D.R. - da qual provavelmente ele também não ficará a par, a propósito! - , vamos em frente!...)


E, pois bem, já na volta, voltamos com uma espécie de "a volta dos que não foram", com essa resenhita de uma obra que podia ter feito parte tanto da sessão "Em busca do livro perdido" aqui do blog (quando era um livro que, por curiosidade, este que aqui escreve o buscava incessantemente por aí há tempos atrás, em livrarias, sebos, etc, sem nunca encontrá-lo) como, posteriormente, daquela intitulada "Leituras em stand-by" (esta destinada a fazer menção a alguma outra obra cuja leitura houvéssemos começado e, por algum motivo - que também tentaríamos eventualmente explicar no texto - , parado). "Mantenha o sistema", de George Orwell, foi difícil de achar, mas, em tempos pós-revolução digital, você pode fugir, mas não pode se esconder, e, enfim foi adquirido, através de um sebo virtual. Depois da sua chegada via correio, contudo, foi também uma leitura meio percalçada em seu início (neste ponto, embora com conteúdos diversos, chego a compará-lo à primeira parte do mcewano "Reparação", um senhor livro, mas o qual requer uma boa "remada" nas primeiras cerca de oitenta arrastadas páginas - portanto, vale sim persistir e vencer a primeira etapa, "a da livraria" - a qual, devo confessar, cheguei mesmo a pular, num expediente pseudo-literário que não me é muito comum mesmo nessas empreitadas aparentemente mais difíceis (isto é, se for o caso, embora também não muito comumente, simplesmente mandamos o produto para a "geladeira" das "Leituras em stand-by") - em "Mantenha o sistema", pois é um bom livro, um legítimo Orwell, embora mesmo o resultado final esteja muito longe do impacto do Mc Iewan mencionado acima, e, numa comparação mais adequada, bastante distante também dos clássicos "1984" e "A revolução dos bichos" - "Mantenha o sistema" seria, aproveitando também a deixa do trocadilho com a situação do protagonista, uma espécie de primo mais pobre - e mais velho, é de 1936 - daqueles...).


Devo dizer, a propósito da tal parte inicial "da livraria", que o que colaborou também para a decisão desse texto sobre o livro aqui foi o fato de ter começado a lê-lo juntamente com uma obra de Calvino, "Se um viajante numa noite de inverno" (este, por sinal, após duas tentativas de engrenada na leitura ao longo de meses de intervalo, acabou novamente voltando para as tais "Leituras em stand-by"!), o qual tem em seu trecho inicial uma curiosa coincidência com este Orwell que aqui destrinchamos.


No livro de Calvino, o narrador, num lance de "metalinguagem" e procurando divulgar a própria obra que se tem em mãos, descreve o leitor adentrando uma livraria e se deparando com inúmeras "classes" de livros a "tentá-lo" antes de chegar ao seu objetivo já definido (que é o próprio livro que se está lendo): a densa barreira dos "Livros Que Você Não Leu", em sub-divisões tais quais a dos "Livros Cuja Leitura é Dispensável", tendo ao lado os "Livros Para Outros Usos Que Não a Leitura", mais adiante os "Livros Já Lidos Sem Que Seja Necessário Abri-los", e na sequência a pesada infantaria dos "Livros Que, Se Você Tivesse Mais Vidas Para Viver, Certamente Leria De Boa Vontade, Mas Infelizmente Os Dias Que Lhe Restam Para Viver Não São Tantos Assim", seguidos dos "Livros Demasiado Caros Que Podem Esperar Para Ser Comprados Quando Forem Revendidos Pela Metade do Preço", os "Livros Que Poderia Pedir Emprestados a Alguém", os "Livros Que Todo Mundo Leu E É Como Se Você Também Os Tivesse Lido", os "Livros Que Deseja Adquirir Para Ter Por Perto Em Qualquer Circunstância", os "Livros Que Você Leu Há Muito Tempo E Que Já Seria Hora De Reler", os "Livros Que Sempre Fingiu Ter Lido E Que Já Seria Hora De Decidir-se A Lê-los Realmente", e por aí vai... 
Pois no livro de Orwell, o protagonista, que na ocasião trabalha numa livraria (e não gosta nem um pouco do trabalho), se refere também aos livros classificando-os em categorias jocosas (ou mesmo sarcásticas) - "Os dorsos polidos e sem manchas suspiravam das estantes: 'Compre-me, compre-me!' ", tais quais as novelas recém-editadas como "noivas ainda virgens a desejar ardentemente que o corta-papel as deflorasse", novelas já criticadas como "viúvas recentes, ainda viçosas, não mais virgens porém", e, "aqui e ali, em grupos de meia dúzia, aquelas coisas patéticas como solteironas, os chamados 'remanescentes', guardando ainda esperançosamente a sua virgindade por tanto tempo preservada"... e segue: "Acima, à direita, ficavam as estantes destinadas à poesia. As que estavam à sua frente continham prosa, uma miscelânea. Para cima e para baixo os livros eram escolhidos entre os baratos e encardidos, enquanto à altura da visão de qualquer cliente ficavam os limpos e caros (Em todas as livrarias se observa uma feroz luta darwiniana entre as obras de autores ainda vivos, colocados sempre à altura da visão do freguês, e as de autores já falecidos, postas acima ou abaixo desse nível - para baixo, para o Gehena, ou para cima, para o trono, mas sempre fora de qualquer local onde possam ser notadas)".


Creio que todo mundo passa vez ou outra por essa situação das tais "coincidências da vida", e isso já aconteceu a este que aqui rabisca em outras ocasiões "literárias", como, por exemplo, quando comecei a ler meu primeiro Bukowski há alguns anos atrás e num daqueles dias locara dois filmes, o famoso musical "Hair" e uma comédia do Jerry Lewis, que continham coincidentemente algo em comum com aquele livro que eu lia do velho safado - no caso de "Hair", o protagonista, como se sabe (e para minha surpresa então, pois eu ainda não sabia) se chama exatamente Bukowski (supostamente numa homenagem ao escritor...); e quanto ao filme de J.L., a certa altura, numa rápida ponta, aparecia um sujeito chamado Milton Berle, que eu não sabia quem era e de quem nunca tinha ouvido falar até um pouco antes (e que já não lembro mais quem é/era também), quando surrealmente lera esse mesmo nome também momentos antes numa curta passagem num dos textos do velho Buk, "trinca" de coincidências interligadas que acabaria jogando-me então num vórtex de elucubrações místicas internas por alguns dias... 
Ou então quando lia a genialmente doida HQ "Shade - o Homem Mutável" em paralelo a um livro sobre relações internacionais (supostamente estudando para um concurso...) e lá pelas tantas em ambas as leituras me salta à vista o termo, até então desconhecido para mim, pluribus unum (expressão latina que significa "de muitos, um" e que seria natural na segunda leitura, mas me pareceu então surpreendente e quase "mágica" na primeira naquele momento - e, portanto, claro, no contexto das duas leituras simultâneas)...
Poderia citar tantas outras situações parecidas (certa vez, ao embarcar num ônibus rumo à capital, começava a ler uma revista que trazia uma grande reportagem sobre inconsciente e subconsciente, quando em seguida espoca na telinha da condução mister Di Caprio invadindo sonhos no nolaniano "A origem", ou ainda, mais recentemente, o fato de ter decidido enfim puxar para ler um livro que zanzava há tempos pela minha estante chamado "Binladenistão", do jornalista Luiz Antônio Araújo - a coincidência, no caso, vem do fato de ter decidido fazê-lo, (supostamente?) ao acaso, nos mesmos dias em que assistia a 4ª temporada da série "Homeland", que, a essa altura, tratava exatamente do tema destrinchado no início do livro, que eram as relações entre o serviço secreto paquistanês e os talibãs - ajudando-me, inclusive, tal leitura, a compreender melhor certas questões a respeito das quais havia boiado um pouco diante da tela...), mas, enfim, o que importa é que no creo en las brujas, pero que las hay, las hay, o que sem dúvida ajudou a me levar a esboçar este texto sobre este obscuro livro de Mr. Blair (o verdadeiro nome de Orwell - Eric Blair) aqui.
Para completar o quadro, poderia citar ainda que a obra que comecei a ler em seguida ao término de "Mantenha o sistema", que foi o kafkiano "O processo" (que, por sinal, lá pela metade acabou indo parar também nas "Leituras em stand-by"... - podem preparar o meu apedrejamento intelectual e tal, mas, pô, o Sr. Homem-Barata é chato bagarai, cara!), tinha o mesmo número de páginas do livro de Orwell: 265. Sim, DU-ZEN-TAS E SES-SEN-TA E CIN-CO!! 
Sabe o que isso quer dizer? Sabe?? 
Bem, como diria aquele outro filósofo, fora a mera coincidência, acho que nada.


Antes de mais nada, porém (embora isso não seja verdade, já que já veio bastante coisa antes, como acima escrito), muito justo é esclarecer que talvez algumas dessas leituras mencionadas não sejam abandonadas simplesmente por seres "ruins" (como obviamente não é o caso do Kafka acima mencionado - aquilo é mais uma "provocaçãozinha" para tentar angariar ibope para o blog... - embora chato sim, de ruim eu não poderia chegar a me atrever a taxá-lo!).
"Mantenha o sistema", por exemplo, quase foi para a geladeira, acho que muito em função de ser uma edição antiga (Editora Hemus), com uma tradução aparentemente meio tosca, erros de digitação, fonte pequena, etc...



   Mas, enfim, vamos a um panorama geral da obra: na capa desta edição (o seu título original, "Keep the aspdistra flying", teve algumas diferentes traduções, ou, melhor até, versões, em português, tais quais, além da aqui já mencionada - que, embora não sendo a mais literal, a que é, ao meu ver, a mais legal - , também as acima ilustradas "O vil metal", "Moinhos de vento" - estas duas, bastante bregas, na minha concepção - , e  "A flor da Inglaterra" - há uma edição mais moderna da obra, se não me engano da Cia das Letras, com esse título, que, ainda que distante, de todos esses seria o mais próximo do original, por mencionar a tal flor - a aspidistra - que o protagonista julga o símbolo maior do seu "inimigo", o deus-dinheiro, por ornar a tal planta quase todos os lares das famílias inglesas de classe média, as quais aspirariam unânimes, conforme a visão do mesmo, por uma vidinha tradicional, com sua casa, um casamento, filhos e um trabalho "decente" - estando este último no cerne da sua cruzada, já que se recusa, por mais bem remunerado que possa ser, a exercer um trabalho qualquer só em função exatamente do dinheiro e deseja, um tanto quanto quixotescamente, viver de literatura, já que é um suposto poeta), temos, no centro de um fundo preto o rosto de uma moça ruiva de olhos azuis, que lembra uma mistura entre a Gina dos palitos de dente e a Julianne Moore (não sei qual o sentido dessa capa, a propósito, já que não há uma mulher de grande destaque na história - o mais próximo disso é a namorada do protagonista, mas que não justificaria também essa ilustração... mas, enfim...). 


Ecco: la Gina Moore orwelliana.

Quanto à história, resumidamente se trata do personagem central, Gordon Comstock, decidindo, como mencionado um pouco acima, travar uma guerra ao deus-dinheiro, ao procurar viver sem se submeter aos caprichos do capitalismo: ele foge de "bons empregos" (que lhe são ofertados e poderiam fazê-lo viver com mais conforto - sua revolta maior é com a área da publicidade, por já ter trabalhado em uma agência e considerar aquele tipo de ocupação o mais cinicamente representativo de tudo o que há de podre no sistema capitalista), enquanto vive com um salário suficiente somente para a moradia em um pequeno quarto de pensão, vestindo roupas esfarrapadas, e sem poder "curtir" a vida com sua amada Rosemary (características que me fizeram lembrar um pouco tanto o triste falecimento recente do músico Belchior como o Harry Haller, de "O lobo da estepe", de Herman Hesse - e ainda, pelo espírito ranzinza, o Ferdinand Bardamu do hipnótico "Viagem ao fim da noite", de Louis-Ferdinand Céline - caramba, este, por sinal, merece faz horas uma homenagem por aqui!). Ainda que de certa forma voluntariamente nessa situação ("Mantenha o sistema" muito provavelmente  deve ter sido inspirado também nos "tempos de mendigo" de Orwell, na década de 20, ainda antes da fama, quando o escritor ainda não exatamente escritor decidiu submeter-se à extrema pobreza, exercendo empregos precários, passando fome, e chegando a morar mesmo na rua, tudo isso um pouco pelas circunstâncias e um pouco pelo voluntário intuito de "observar - e vivenciar - a realidade nua e crua" - o que resultaria, alguns anos depois, na obra semi-autobiográfica "Na pior em Paris e Londres"), Gordon passa o livro reclamando e bradando contra a dominação do dinheiro e de como é humilhado e passa dificuldade por não tê-lo, o que acaba trazendo ocasionalmente toques ligeiramente cômicos à trama, especialmente em suas discussões travadas com o amigo Ravelston, um editor literário e socialista caviar (isto é, rico, mas que procurava infligir-se voluntariamente algumas privações, para viver de acordo com seus ideais - mas não tanto a ponto de não poder comer um bom bife e tomar um bom vinho em um bom restaurante com sua garota) e com a própria Rosemary (impossível também não comparar o passeio do casal pelo campo num dia de domingo com o giro feito por Winston e Júlia no mais famoso orwelliano "1984"- por sinal, a irmã de Gordon se chama também Júlia...), quando imprime sempre seu melodrama em tons exagerados de autopiedade e ácida ironia (sendo que refuta veementemente o socialismo ao qual o amigo tenta convertê-lo, mas vocifera constantemente contra o deus-dinheiro e, em especial, contra o efeito que eles têm sobre as mulheres e essa equação sobre caras sem dinheiro como ele - concordando indiretamente então com a tese de Marx de que a opressão feminina é resultado do capitalismo) - e a obra se esbalda também exatamente (como não poderia deixar de ser num bom Orwell - e aqui ele dava já mostras do que viria cerca de dez anos depois nas suas duas principais obras) em irônicas - e contundentes - críticas à crueza e indiferença do capitalismo e às incoerências e hipocrisia do socialismo - e, claro, do próprio Gordon Comstock, que, na primeira ocasião a receber uma boa remuneração por um trabalho literário, por exemplo, manda as favas boa parte de seus princípios e chuta o pau da barraca em grande estilo, talvez na melhor passagem do livro, sem culpa pelas libras a lhe pesarem no bolso, e as quais ele gasta selvagemente numa noitada divertidamente destruidora na linha "Se beber, não case". 



"Keep the aspidistra flying" foi adaptado também para o cinema, em 1997, tendo Richard E. Grant e Helena Bonham Carter no elenco (com um título alternativo também de "A merry war" - e, incrivelmente, sem tradução do título para o português). 

Para concluir, segue um elucidativo trecho da obra:


"...Continuaram a discutir sobre o socialismo.

            - Sabe, Gordon, já é realmente tempo de você começar a ler Marx - disse Ravelston em tom menos apologético do que de costume, porque o gosto vil da cerveja deixara-o irritado.
           - Com mais facilidade lerei os livros da sra. Humphry Ward - disse Gordon.
           - Mas não compreende que a sua atitude não é razoável? Você está sempre a invectivar o capitalismo e no entanto não aceita a única alternativa possível. Ninguém pode resolver as coisas de modo secreto, clandestino. Temos de aceitar ou o socialismo ou o capitalismo. Não existem outros caminhos.
          - Pois eu lhe digo que não me quero preocupar com o socialismo. Só de pensar nele começo a bocejar.
          - Mas, afinal, quais são suas objeções ao socialismo? 
          - Existe uma única objeção ao socialismo: que ninguém o deseja.
          - Ah, mas certamente é um absurdo dizer uma coisa destas!
          - Isto é, ninguém que possa ver o que o socialismo realmente é.
          - Mas o que o socialismo significa, de acordo com as suas ideias?
          - Ah, alguma coisa assim no estilo de Aldous Huxley em 'Brave New World' ('Admirável Mundo Novo') - só que não tão divertido. Quatro horas por dia em uma fábrica modelo, devidamente rotulado com o número 6003. Rações servidas em papel aluminizado, em cozinhas comunitárias.  Marchas da comunidade inteira, partindo do Hotel Max para o Hotel Lenin e vice-versa. Clínicas para o aborto oficialmente adotado em todas as esquinas. Tudo muito bem dentro do seu sistema, naturalmente. Só que não o desejamos.
            Ravelston suspirou. Em 'Anticristo', uma vez por mês ele repudiava tal versão do socialismo. 
           - Bem, então o que é mesmo que nós desejamos?
           - Só Deus sabe. Tudo o que sabemos é o que não queremos. E isto é o que está errado nos dias de hoje. Estamos encravados, grudados, como o asno de Buridan. Existem três alternativas ao invés de duas e todas as três nos deixam nauseados. O socialismo é uma delas.
           - E quais são as outras duas?
           - Oh, acho que são o suicídio e a Igreja Católica.
           - A Igreja Católica! - exclamou Ravelston com um sorriso anticlerical afrontado - Você considera isto como uma alternativa?
           - Bem, é uma posição tentadora para a classe culta do país, não é mesmo?
           - Não para o que eu chamo de classe culta, de eruditos. Embora exista Eliot, naturalmente - admitiu Ravelston.
           - E haverá muitos outros, você pode apostar. Ouso mesmo dizer que é um bocado confortável sob as asas da Mamãe Igreja. Talvez um pouco insalubre, naturalmente, mas você ali sente-se seguro, de qualquer forma.
           - A mim me parece que isto é apenas uma outra forma de suicídio - disse Ravelston, coçando o nariz.
           - E é, de certa forma. Mas o socialismo também. Pelo menos é uma opção de desespero. Mas não posso cometer suicídio, não o real suicídio. É muito brando, muito suave. Não vou desistir do pedaço que me cabe nesta terra para ninguém. Antes disso prefiro matar uns poucos dos meus inimigos. 
           - E quem são seus inimigos? - perguntou Ravelston, sorrindo novamente.
           - Ah, qualquer um que tenha uma renda acima de quinhentas libras por ano.

(...)     - É tudo besteira, isto que estivemos falando.

           - O que é que é besteira?
           - Tudo isto a respeito de socialismo, capitalismo, o estado do mundo moderno e só Deus sabe o quê. Não dou um figo pelo que acontece ao mundo atual. Se toda a Inglaterra estivesse morrendo de fome com exceção de mim mesmo e das pessoas que me são caras, pouco se me dava.
           - Você não acha que exagera um pouco?
           - Toda esta nossa conversa não passa de um reflexo dos nossos próprios sentimentos. Tudo ditado pelo que temos em nossos bolsos. Posso andar por toda Londres, para cima e para baixo, a dizer que esta é uma cidade de mortos, que nossa civilização está morrendo, que desejo que a guerra seja declarada e mais coisas deste jaez - mas tudo isto apenas significa que meu salário é de duas libras por semana, quando eu gostaria que fosse de cinco.
          Mais uma vez Ravelston lembrou-se, levado por indireta comparação, da enormidade da sua renda pessoal. Coçou o nariz, vagarosamente, com a junta do seu dedo indicador esquerdo. 
          - Naturalmente concordo com você até certo ponto. Afinal de contas é apenas o que Marx disse. Toda ideologia é um reflexo das circunstâncias econômicas.
          - Ah, mas você só entende isto através de Marx! Você não sabe o que significa arrastar-se nesta vida com apenas duas libras por semana. Não se trata de passar privações, pois não é algo assim tão decente como a penúria. É a maldita, a vil, a sórdida mesquinhez da coisa. Viver sozinho durante semanas a fio porque você não tem dinheiro, não tem amigos. Qualificar-se de escritor e nunca chegar a produzir alguma coisa porque você já se desgastou demais para conseguir escrever. Vive-se numa espécie de submundo torpe. Numa espécie de esgoto mental.
          Agora havia começado .Nunca ficavam juntos por muito tempo sem que Gordon começasse a falar naquele estilo. Sabia que as suas maneiras eram as mais vis e que deixava Ravelston horrivelmente embaraçado. Mas ainda assim não se podia conter. Tinha de contar os seus problemas a alguém e Ravelston era a única pessoa que o entendia. A pobreza, como qualquer outra ferida asquerosa, só deve ser exposta ocasionalmente. Começou então a falar, com detalhes obscenos, da sua vida em Willowbed Road. Estendeu-se sobre o cheiro da água servida e do repolho, sobre as garrafas de molhos já cheios de coágulos na sala de jantar sobre a comida miserável e as aspidistras. Descreveu o preparo das suas furtivas xícaras de chá (no seu quarto da pensão, proibidas pela proprietária) e como tinha de proceder para livrar-se das folhas já usadas, jogando-as na privada. Ravelston, sentindo-se terrivelmente culpado, ali estava sentado a revolver o copo entre as mãos, vagarosamente. Contra seu peito, do lado direito, podia sentir a forma quadrada e acusadora da sua carteira, na qual, ele sabia, aninhavam-se notas no total de oito libras e mais duas notas de dez xelins, ao lado do seu gordo e vigoroso talão de cheques. Como eram horríveis os detalhes da pobreza! Não que o que Gordon estivesse descrevendo fosse realmente pobreza - quando muito tratava-se da sua orla. Mas, e quanto aos verdadeiros pobres? Que dizer dos desempregados de Middlesbrough, sete em um quarto, a cinco xelins por semana? Quando existem pessoas que vivem deste modo, como pode alguém ousar sair neste mundo com notas de libras e talões de cheques no bolso?"




(PS: Uma solicitação, amigo(a) deletrista que por ventura ouse ler isso tudo acima: como ficou realmente grande esse texto e não estou disposto a revisá-lo mais uma vez só para verificar esse detalhe, se por acaso encontrar algum "Mantenha o respeito" aí por cima, por favor, nos dê o toque - que não, não é um dos tradicionais trocadilhos infames do blog, mas também não consegui não ouvir martelando o refrão do D2 de trilha de fundo na minha cabeça a cada vez que dava uma fuçada neste post e, portanto, não duvido que possa ter acontecido algum lapso do tipo!... Obrigado pela compreensão)