quarta-feira, 21 de junho de 2017

Pelos sebos da vida: "Mantenha o sistema/ A flor da Inglaterra/ O vil metal/ Moinhos de vento", de George Orwell (por Diego T.Hahn)


Buenas; após uma pequena pausa de férias (de cerca de o quê, meio aninho só!??...), graças a insistentes manifestações de nossos ardorosos 3 ou 4 (milhões de) fiéis leitores we´re back, man! (Prometendo inclusive manter essa fantástica e frenética frequência, com UM POST POR SEMESTRE!! Que tal??? Hein? Hein??) "Eles" não vão conseguir nos calar! (Essa é boa para instigar a "audiência", criar uma polemicazinha, sabe como é... "eles" quem? Quem são "eles"?? Naquelas...) Mas é, como diria o velho filósofo aquele, vocês vão ter que nos engolir! (Embora meu sócio aqui do blog, J., provavelmente nem esteja a par - seja da nossa parada como desta retomada, como creio mesmo que esteja é cagando para isso aqui e nem lembre mais do velho "De Letra" em si... - pronto, aproveitado o momento também para uma pequena e indireta - quase subliminar - D.R. - da qual provavelmente ele também não ficará a par, a propósito! - , vamos em frente!...)


E, pois bem, já na volta, voltamos com uma espécie de "a volta dos que não foram", com essa resenhita de uma obra que podia ter feito parte tanto da sessão "Em busca do livro perdido" aqui do blog (quando era um livro que, por curiosidade, este que aqui escreve o buscava incessantemente por aí há tempos atrás, em livrarias, sebos, etc, sem nunca encontrá-lo) como, posteriormente, daquela intitulada "Leituras em stand-by" (esta destinada a fazer menção a alguma outra obra cuja leitura houvéssemos começado e, por algum motivo - que também tentaríamos eventualmente explicar no texto - , parado). "Mantenha o sistema", de George Orwell, foi difícil de achar, mas, em tempos pós-revolução digital, você pode fugir, mas não pode se esconder, e, enfim foi adquirido, através de um sebo virtual. Depois da sua chegada via correio, contudo, foi também uma leitura meio percalçada em seu início (neste ponto, embora com conteúdos diversos, chego a compará-lo à primeira parte do mcewano "Reparação", um senhor livro, mas o qual requer uma boa "remada" nas primeiras cerca de oitenta arrastadas páginas - portanto, vale sim persistir e vencer a primeira etapa, "a da livraria" - a qual, devo confessar, cheguei mesmo a pular, num expediente pseudo-literário que não me é muito comum mesmo nessas empreitadas aparentemente mais difíceis (isto é, se for o caso, embora também não muito comumente, simplesmente mandamos o produto para a "geladeira" das "Leituras em stand-by") - em "Mantenha o sistema", pois é um bom livro, um legítimo Orwell, embora mesmo o resultado final esteja muito longe do impacto do Mc Iewan mencionado acima, e, numa comparação mais adequada, bastante distante também dos clássicos "1984" e "A revolução dos bichos" - "Mantenha o sistema" seria, aproveitando também a deixa do trocadilho com a situação do protagonista, uma espécie de primo mais pobre - e mais velho, é de 1936 - daqueles...).


Devo dizer, a propósito da tal parte inicial "da livraria", que o que colaborou também para a decisão desse texto sobre o livro aqui foi o fato de ter começado a lê-lo juntamente com uma obra de Calvino, "Se um viajante numa noite de inverno" (este, por sinal, após duas tentativas de engrenada na leitura ao longo de meses de intervalo, acabou novamente voltando para as tais "Leituras em stand-by"!), o qual tem em seu trecho inicial uma curiosa coincidência com este Orwell que aqui destrinchamos.


No livro de Calvino, o narrador, num lance de "metalinguagem" e procurando divulgar a própria obra que se tem em mãos, descreve o leitor adentrando uma livraria e se deparando com inúmeras "classes" de livros a "tentá-lo" antes de chegar ao seu objetivo já definido (que é o próprio livro que se está lendo): a densa barreira dos "Livros Que Você Não Leu", em sub-divisões tais quais a dos "Livros Cuja Leitura é Dispensável", tendo ao lado os "Livros Para Outros Usos Que Não a Leitura", mais adiante os "Livros Já Lidos Sem Que Seja Necessário Abri-los", e na sequência a pesada infantaria dos "Livros Que, Se Você Tivesse Mais Vidas Para Viver, Certamente Leria De Boa Vontade, Mas Infelizmente Os Dias Que Lhe Restam Para Viver Não São Tantos Assim", seguidos dos "Livros Demasiado Caros Que Podem Esperar Para Ser Comprados Quando Forem Revendidos Pela Metade do Preço", os "Livros Que Poderia Pedir Emprestados a Alguém", os "Livros Que Todo Mundo Leu E É Como Se Você Também Os Tivesse Lido", os "Livros Que Deseja Adquirir Para Ter Por Perto Em Qualquer Circunstância", os "Livros Que Você Leu Há Muito Tempo E Que Já Seria Hora De Reler", os "Livros Que Sempre Fingiu Ter Lido E Que Já Seria Hora De Decidir-se A Lê-los Realmente", e por aí vai... 
Pois no livro de Orwell, o protagonista, que na ocasião trabalha numa livraria (e não gosta nem um pouco do trabalho), se refere também aos livros classificando-os em categorias jocosas (ou mesmo sarcásticas) - "Os dorsos polidos e sem manchas suspiravam das estantes: 'Compre-me, compre-me!' ", tais quais as novelas recém-editadas como "noivas ainda virgens a desejar ardentemente que o corta-papel as deflorasse", novelas já criticadas como "viúvas recentes, ainda viçosas, não mais virgens porém", e, "aqui e ali, em grupos de meia dúzia, aquelas coisas patéticas como solteironas, os chamados 'remanescentes', guardando ainda esperançosamente a sua virgindade por tanto tempo preservada"... e segue: "Acima, à direita, ficavam as estantes destinadas à poesia. As que estavam à sua frente continham prosa, uma miscelânea. Para cima e para baixo os livros eram escolhidos entre os baratos e encardidos, enquanto à altura da visão de qualquer cliente ficavam os limpos e caros (Em todas as livrarias se observa uma feroz luta darwiniana entre as obras de autores ainda vivos, colocados sempre à altura da visão do freguês, e as de autores já falecidos, postas acima ou abaixo desse nível - para baixo, para o Gehena, ou para cima, para o trono, mas sempre fora de qualquer local onde possam ser notadas)".


Creio que todo mundo passa vez ou outra por essa situação das tais "coincidências da vida", e isso já aconteceu a este que aqui rabisca em outras ocasiões "literárias", como, por exemplo, quando comecei a ler meu primeiro Bukowski há alguns anos atrás e num daqueles dias locara dois filmes, o famoso musical "Hair" e uma comédia do Jerry Lewis, que continham coincidentemente algo em comum com aquele livro que eu lia do velho safado - no caso de "Hair", o protagonista, como se sabe (e para minha surpresa então, pois eu ainda não sabia) se chama exatamente Bukowski (supostamente numa homenagem ao escritor...); e quanto ao filme de J.L., a certa altura, numa rápida ponta, aparecia um sujeito chamado Milton Berle, que eu não sabia quem era e de quem nunca tinha ouvido falar até um pouco antes (e que já não lembro mais quem é/era também), quando surrealmente lera esse mesmo nome também momentos antes numa curta passagem num dos textos do velho Buk, "trinca" de coincidências interligadas que acabaria jogando-me então num vórtex de elucubrações místicas internas por alguns dias... 
Ou então quando lia a genialmente doida HQ "Shade - o Homem Mutável" em paralelo a um livro sobre relações internacionais (supostamente estudando para um concurso...) e lá pelas tantas em ambas as leituras me salta à vista o termo, até então desconhecido para mim, pluribus unum (expressão latina que significa "de muitos, um" e que seria natural na segunda leitura, mas me pareceu então surpreendente e quase "mágica" na primeira naquele momento - e, portanto, claro, no contexto das duas leituras simultâneas)...
Poderia citar tantas outras situações parecidas (certa vez, ao embarcar num ônibus rumo à capital, começava a ler uma revista que trazia uma grande reportagem sobre inconsciente e subconsciente, quando em seguida espoca na telinha da condução mister Di Caprio invadindo sonhos no nolaniano "A origem", ou ainda, mais recentemente, o fato de ter decidido enfim puxar para ler um livro que zanzava há tempos pela minha estante chamado "Binladenistão", do jornalista Luiz Antônio Araújo - a coincidência, no caso, vem do fato de ter decidido fazê-lo, (supostamente?) ao acaso, nos mesmos dias em que assistia a 4ª temporada da série "Homeland", que, a essa altura, tratava exatamente do tema destrinchado no início do livro, que eram as relações entre o serviço secreto paquistanês e os talibãs - ajudando-me, inclusive, tal leitura, a compreender melhor certas questões a respeito das quais havia boiado um pouco diante da tela...), mas, enfim, o que importa é que no creo en las brujas, pero que las hay, las hay, o que sem dúvida ajudou a me levar a esboçar este texto sobre este obscuro livro de Mr. Blair (o verdadeiro nome de Orwell - Eric Blair) aqui.
Para completar o quadro, poderia citar ainda que a obra que comecei a ler em seguida ao término de "Mantenha o sistema", que foi o kafkiano "O processo" (que, por sinal, lá pela metade acabou indo parar também nas "Leituras em stand-by"... - podem preparar o meu apedrejamento intelectual e tal, mas, pô, o Sr. Homem-Barata é chato bagarai, cara!), tinha o mesmo número de páginas do livro de Orwell: 265. Sim, DU-ZEN-TAS E SES-SEN-TA E CIN-CO!! 
Sabe o que isso quer dizer? Sabe?? 
Bem, como diria aquele outro filósofo, fora a mera coincidência, acho que nada.


Antes de mais nada, porém (embora isso não seja verdade, já que já veio bastante coisa antes, como acima escrito), muito justo é esclarecer que talvez algumas dessas leituras mencionadas não sejam abandonadas simplesmente por seres "ruins" (como obviamente não é o caso do Kafka acima mencionado - aquilo é mais uma "provocaçãozinha" para tentar angariar ibope para o blog... - embora chato sim, de ruim eu não poderia chegar a me atrever a taxá-lo!).
"Mantenha o sistema", por exemplo, quase foi para a geladeira, acho que muito em função de ser uma edição antiga (Editora Hemus), com uma tradução aparentemente meio tosca, erros de digitação, fonte pequena, etc...



   Mas, enfim, vamos a um panorama geral da obra: na capa desta edição (o seu título original, "Keep the aspdistra flying", teve algumas diferentes traduções, ou, melhor até, versões, em português, tais quais, além da aqui já mencionada - que, embora não sendo a mais literal, a que é, ao meu ver, a mais legal - , também as acima ilustradas "O vil metal", "Moinhos de vento" - estas duas, bastante bregas, na minha concepção - , e  "A flor da Inglaterra" - há uma edição mais moderna da obra, se não me engano da Cia das Letras, com esse título, que, ainda que distante, de todos esses seria o mais próximo do original, por mencionar a tal flor - a aspidistra - que o protagonista julga o símbolo maior do seu "inimigo", o deus-dinheiro, por ornar a tal planta quase todos os lares das famílias inglesas de classe média, as quais aspirariam unânimes, conforme a visão do mesmo, por uma vidinha tradicional, com sua casa, um casamento, filhos e um trabalho "decente" - estando este último no cerne da sua cruzada, já que se recusa, por mais bem remunerado que possa ser, a exercer um trabalho qualquer só em função exatamente do dinheiro e deseja, um tanto quanto quixotescamente, viver de literatura, já que é um suposto poeta), temos, no centro de um fundo preto o rosto de uma moça ruiva de olhos azuis, que lembra uma mistura entre a Gina dos palitos de dente e a Julianne Moore (não sei qual o sentido dessa capa, a propósito, já que não há uma mulher de grande destaque na história - o mais próximo disso é a namorada do protagonista, mas que não justificaria também essa ilustração... mas, enfim...). 


Ecco: la Gina Moore orwelliana.

Quanto à história, resumidamente se trata do personagem central, Gordon Comstock, decidindo, como mencionado um pouco acima, travar uma guerra ao deus-dinheiro, ao procurar viver sem se submeter aos caprichos do capitalismo: ele foge de "bons empregos" (que lhe são ofertados e poderiam fazê-lo viver com mais conforto - sua revolta maior é com a área da publicidade, por já ter trabalhado em uma agência e considerar aquele tipo de ocupação o mais cinicamente representativo de tudo o que há de podre no sistema capitalista), enquanto vive com um salário suficiente somente para a moradia em um pequeno quarto de pensão, vestindo roupas esfarrapadas, e sem poder "curtir" a vida com sua amada Rosemary (características que me fizeram lembrar um pouco tanto o triste falecimento recente do músico Belchior como o Harry Haller, de "O lobo da estepe", de Herman Hesse - e ainda, pelo espírito ranzinza, o Ferdinand Bardamu do hipnótico "Viagem ao fim da noite", de Louis-Ferdinand Céline - caramba, este, por sinal, merece faz horas uma homenagem por aqui!). Ainda que de certa forma voluntariamente nessa situação ("Mantenha o sistema" muito provavelmente  deve ter sido inspirado também nos "tempos de mendigo" de Orwell, na década de 20, ainda antes da fama, quando o escritor ainda não exatamente escritor decidiu submeter-se à extrema pobreza, exercendo empregos precários, passando fome, e chegando a morar mesmo na rua, tudo isso um pouco pelas circunstâncias e um pouco pelo voluntário intuito de "observar - e vivenciar - a realidade nua e crua" - o que resultaria, alguns anos depois, na obra semi-autobiográfica "Na pior em Paris e Londres"), Gordon passa o livro reclamando e bradando contra a dominação do dinheiro e de como é humilhado e passa dificuldade por não tê-lo, o que acaba trazendo ocasionalmente toques ligeiramente cômicos à trama, especialmente em suas discussões travadas com o amigo Ravelston, um editor literário e socialista caviar (isto é, rico, mas que procurava infligir-se voluntariamente algumas privações, para viver de acordo com seus ideais - mas não tanto a ponto de não poder comer um bom bife e tomar um bom vinho em um bom restaurante com sua garota) e com a própria Rosemary (impossível também não comparar o passeio do casal pelo campo num dia de domingo com o giro feito por Winston e Júlia no mais famoso orwelliano "1984"- por sinal, a irmã de Gordon se chama também Júlia...), quando imprime sempre seu melodrama em tons exagerados de autopiedade e ácida ironia (sendo que refuta veementemente o socialismo ao qual o amigo tenta convertê-lo, mas vocifera constantemente contra o deus-dinheiro e, em especial, contra o efeito que eles têm sobre as mulheres e essa equação sobre caras sem dinheiro como ele - concordando indiretamente então com a tese de Marx de que a opressão feminina é resultado do capitalismo) - e a obra se esbalda também exatamente (como não poderia deixar de ser num bom Orwell - e aqui ele dava já mostras do que viria cerca de dez anos depois nas suas duas principais obras) em irônicas - e contundentes - críticas à crueza e indiferença do capitalismo e às incoerências e hipocrisia do socialismo - e, claro, do próprio Gordon Comstock, que, na primeira ocasião a receber uma boa remuneração por um trabalho literário, por exemplo, manda as favas boa parte de seus princípios e chuta o pau da barraca em grande estilo, talvez na melhor passagem do livro, sem culpa pelas libras a lhe pesarem no bolso, e as quais ele gasta selvagemente numa noitada divertidamente destruidora na linha "Se beber, não case". 



"Keep the aspidistra flying" foi adaptado também para o cinema, em 1997, tendo Richard E. Grant e Helena Bonham Carter no elenco (com um título alternativo também de "A merry war" - e, incrivelmente, sem tradução do título para o português). 

Para concluir, segue um elucidativo trecho da obra:


"...Continuaram a discutir sobre o socialismo.

            - Sabe, Gordon, já é realmente tempo de você começar a ler Marx - disse Ravelston em tom menos apologético do que de costume, porque o gosto vil da cerveja deixara-o irritado.
           - Com mais facilidade lerei os livros da sra. Humphry Ward - disse Gordon.
           - Mas não compreende que a sua atitude não é razoável? Você está sempre a invectivar o capitalismo e no entanto não aceita a única alternativa possível. Ninguém pode resolver as coisas de modo secreto, clandestino. Temos de aceitar ou o socialismo ou o capitalismo. Não existem outros caminhos.
          - Pois eu lhe digo que não me quero preocupar com o socialismo. Só de pensar nele começo a bocejar.
          - Mas, afinal, quais são suas objeções ao socialismo? 
          - Existe uma única objeção ao socialismo: que ninguém o deseja.
          - Ah, mas certamente é um absurdo dizer uma coisa destas!
          - Isto é, ninguém que possa ver o que o socialismo realmente é.
          - Mas o que o socialismo significa, de acordo com as suas ideias?
          - Ah, alguma coisa assim no estilo de Aldous Huxley em 'Brave New World' ('Admirável Mundo Novo') - só que não tão divertido. Quatro horas por dia em uma fábrica modelo, devidamente rotulado com o número 6003. Rações servidas em papel aluminizado, em cozinhas comunitárias.  Marchas da comunidade inteira, partindo do Hotel Max para o Hotel Lenin e vice-versa. Clínicas para o aborto oficialmente adotado em todas as esquinas. Tudo muito bem dentro do seu sistema, naturalmente. Só que não o desejamos.
            Ravelston suspirou. Em 'Anticristo', uma vez por mês ele repudiava tal versão do socialismo. 
           - Bem, então o que é mesmo que nós desejamos?
           - Só Deus sabe. Tudo o que sabemos é o que não queremos. E isto é o que está errado nos dias de hoje. Estamos encravados, grudados, como o asno de Buridan. Existem três alternativas ao invés de duas e todas as três nos deixam nauseados. O socialismo é uma delas.
           - E quais são as outras duas?
           - Oh, acho que são o suicídio e a Igreja Católica.
           - A Igreja Católica! - exclamou Ravelston com um sorriso anticlerical afrontado - Você considera isto como uma alternativa?
           - Bem, é uma posição tentadora para a classe culta do país, não é mesmo?
           - Não para o que eu chamo de classe culta, de eruditos. Embora exista Eliot, naturalmente - admitiu Ravelston.
           - E haverá muitos outros, você pode apostar. Ouso mesmo dizer que é um bocado confortável sob as asas da Mamãe Igreja. Talvez um pouco insalubre, naturalmente, mas você ali sente-se seguro, de qualquer forma.
           - A mim me parece que isto é apenas uma outra forma de suicídio - disse Ravelston, coçando o nariz.
           - E é, de certa forma. Mas o socialismo também. Pelo menos é uma opção de desespero. Mas não posso cometer suicídio, não o real suicídio. É muito brando, muito suave. Não vou desistir do pedaço que me cabe nesta terra para ninguém. Antes disso prefiro matar uns poucos dos meus inimigos. 
           - E quem são seus inimigos? - perguntou Ravelston, sorrindo novamente.
           - Ah, qualquer um que tenha uma renda acima de quinhentas libras por ano.

(...)     - É tudo besteira, isto que estivemos falando.

           - O que é que é besteira?
           - Tudo isto a respeito de socialismo, capitalismo, o estado do mundo moderno e só Deus sabe o quê. Não dou um figo pelo que acontece ao mundo atual. Se toda a Inglaterra estivesse morrendo de fome com exceção de mim mesmo e das pessoas que me são caras, pouco se me dava.
           - Você não acha que exagera um pouco?
           - Toda esta nossa conversa não passa de um reflexo dos nossos próprios sentimentos. Tudo ditado pelo que temos em nossos bolsos. Posso andar por toda Londres, para cima e para baixo, a dizer que esta é uma cidade de mortos, que nossa civilização está morrendo, que desejo que a guerra seja declarada e mais coisas deste jaez - mas tudo isto apenas significa que meu salário é de duas libras por semana, quando eu gostaria que fosse de cinco.
          Mais uma vez Ravelston lembrou-se, levado por indireta comparação, da enormidade da sua renda pessoal. Coçou o nariz, vagarosamente, com a junta do seu dedo indicador esquerdo. 
          - Naturalmente concordo com você até certo ponto. Afinal de contas é apenas o que Marx disse. Toda ideologia é um reflexo das circunstâncias econômicas.
          - Ah, mas você só entende isto através de Marx! Você não sabe o que significa arrastar-se nesta vida com apenas duas libras por semana. Não se trata de passar privações, pois não é algo assim tão decente como a penúria. É a maldita, a vil, a sórdida mesquinhez da coisa. Viver sozinho durante semanas a fio porque você não tem dinheiro, não tem amigos. Qualificar-se de escritor e nunca chegar a produzir alguma coisa porque você já se desgastou demais para conseguir escrever. Vive-se numa espécie de submundo torpe. Numa espécie de esgoto mental.
          Agora havia começado .Nunca ficavam juntos por muito tempo sem que Gordon começasse a falar naquele estilo. Sabia que as suas maneiras eram as mais vis e que deixava Ravelston horrivelmente embaraçado. Mas ainda assim não se podia conter. Tinha de contar os seus problemas a alguém e Ravelston era a única pessoa que o entendia. A pobreza, como qualquer outra ferida asquerosa, só deve ser exposta ocasionalmente. Começou então a falar, com detalhes obscenos, da sua vida em Willowbed Road. Estendeu-se sobre o cheiro da água servida e do repolho, sobre as garrafas de molhos já cheios de coágulos na sala de jantar sobre a comida miserável e as aspidistras. Descreveu o preparo das suas furtivas xícaras de chá (no seu quarto da pensão, proibidas pela proprietária) e como tinha de proceder para livrar-se das folhas já usadas, jogando-as na privada. Ravelston, sentindo-se terrivelmente culpado, ali estava sentado a revolver o copo entre as mãos, vagarosamente. Contra seu peito, do lado direito, podia sentir a forma quadrada e acusadora da sua carteira, na qual, ele sabia, aninhavam-se notas no total de oito libras e mais duas notas de dez xelins, ao lado do seu gordo e vigoroso talão de cheques. Como eram horríveis os detalhes da pobreza! Não que o que Gordon estivesse descrevendo fosse realmente pobreza - quando muito tratava-se da sua orla. Mas, e quanto aos verdadeiros pobres? Que dizer dos desempregados de Middlesbrough, sete em um quarto, a cinco xelins por semana? Quando existem pessoas que vivem deste modo, como pode alguém ousar sair neste mundo com notas de libras e talões de cheques no bolso?"




(PS: Uma solicitação, amigo(a) deletrista que por ventura ouse ler isso tudo acima: como ficou realmente grande esse texto e não estou disposto a revisá-lo mais uma vez só para verificar esse detalhe, se por acaso encontrar algum "Mantenha o respeito" aí por cima, por favor, nos dê o toque - que não, não é um dos tradicionais trocadilhos infames do blog, mas também não consegui não ouvir martelando o refrão do D2 de trilha de fundo na minha cabeça a cada vez que dava uma fuçada neste post e, portanto, não duvido que possa ter acontecido algum lapso do tipo!... Obrigado pela compreensão)