domingo, 23 de dezembro de 2018

"Papai Noel não existe" (por Diego T. Hahn)


(Misturando preguiça de fim de ano, ritmo já meio de férias, e, bem, a temática pertinente - a propósito, tirem as crianças da sala (ao menos, aquelas ainda "crentes"...)! - , vamos encerrar 2018 aqui no De Letra com uma reprise - texto que, não custa nem um pouco reprisar também, foi selecionado no ano de 2013 para a coletânea dos melhores do Prêmio Sesc de Crônicas "Rubem Braga", de Brasília/DF - obrigado, obrigado!... E Feliz Natal e tudo o mais!)

Não lembro bem do exato momento em que esse fato se deu - o que me parece estranho, já que é de certa forma um "divisor de águas": agora você é um mocinho, não é mais tão ingênuo, não acredita mais em tudo que te dizem, sabe que há muito mais coisas por trás das coisas por trás de todas as coisas, e às vezes as pessoas só querem te iludir e...

Bem, enfim, você entendeu: é um "momento-chave". Pois, como dizia, não lembro bem do exato momento em que descobri – ou me contaram – que o bom velhinho não existe, ao menos não aquele bom velhinho, que bom velhinho de verdade mesmo é o vovô e ele não dirige um trenó voador e ele tem como animal de estimação um protocolar cãozinho e não um bando de renas. Não lembro, aliás, se descobri por conta própria ou se alguém me contou, mas não creio que tenha restado algum trauma da revelação; ao menos não tenho registrado conscientemente na memória algum "choque" decorrente de tal descoberta...

Penso nisso, no entanto, agora, ao sentir essa melancolia, essa nostalgia, essa tristeza misturada com alegria inundar meu peito, ao flagrar o palhaço, ainda todo maquiado, fora do picadeiro, fumando um cigarro e esbravejando algum palavrão em protesto contra alguma coisa que o incomoda ou contra as agruras da vida em geral, com um tom de voz e uma carranca totalmente diversos daqueles impostados naqueles mágicos momentos de alguns instantes atrás no decorrer do show.

Esse palhaço fora do picadeiro é a vida crua e real. Ele é a revelação que Papai Noel não existe mais uma vez sendo jogada na minha cara, depois de tantos anos.

Não só ele, na verdade, como qualquer artista em geral, quando o vemos “do lado de fora”, falando de qualquer futilidade do cotidiano, como a gente, nos dá uma certa sensação de “pertencimento” ao mundo, uma sensação de que a nossa vida não tem nada de excepcionalmente banal – ela é banal como todas as outras, mesmo aquelas das estrelas – e ao mesmo tempo de desilusão.

Pois sim. No fim das contas, é isso: vivemos de ilusão.

É como ver o ídolo do nosso time indo embora depois de anos de clube e jogando no rival, beijando a camisa adversária como um dia beijou a nossa; é como ver os erros de gravação de um filme; é como perceber que talvez não haja nada além dos erros de gravação.

Mas ainda assim vivemos e continuamos nos alimentando de ilusão. Por mais racionais e duros que sejamos, invocamos vez em quando nos nossos íntimos aquele resquício de magia que tem um quê de infantilidade – ou vice-versa – lá no fundo do peito. Apesar de termos certeza de que tudo isso aqui se resume tão somente a células, carne e barro vagando a esmo pelo espaço, olhamos da janela para o céu estrelado na calada da noite e nos permitimos viajar longe por alguns instantes, solitariamente, em segredo, sem que ninguém mais saiba, naquela nossa nave particular, buscando por um algo mais lá nos confins do universo – ou mesmo em alguma outra dimensão só nossa.

E assim, quando voltamos, por mais desgastados, ranzinzas e céticos que sigamos, continuamos rindo do palhaço – e, de vez em quando, nos flagramos até mesmo dando uma olhada meio de relance, como quem não quer nada, para a chaminé em meio à ceia de Natal.

domingo, 7 de outubro de 2018

"A Profecia: Esquecendo a lição de Optimus Prime, Marco Véio rumo ao Planalto..." (ou "Só a Arte salva") (por Diego T. Hahn)


Cara, o que eu queria dizer é mais ou menos o seguinte: eu posso não ser um mito, ok... maaass... ando nuns delírios de ser mesmo uma espécie de profeta (bem, como o nosso país é talvez o mais democrático do mundo – aparentemente qualquer um pode ser presidente, independentemente dos delírios – , por que não já começar a pensar em um corrida ao Planalto baseado então nesse meu novo status??...)

O caso é que há alguns (3?4?...) anos, logo após a explosão da revolução pós-pós-pós-digital, com a proliferação dos smartphones que curiosamente geraram não uma maravilhosa onda de informação como seria de se supor (meio que utopicamente, agora vejo, é verdade...) mas sim primeiramente uma insuportável onda de popularização dos tais dos memes, que pipocavam (e continuam pipocando) pra lá e pra cá, eu (que não tinha – e, acredite, continuo não tendo – face ou mesmo o tal do uáts) olhava para a galera em alguns encontros, churrascos, ou simplesmente no dia a dia, e observava – fora a brincadeira inicial do “profeta”, não queria dar uma de visionário às avessas, mas há coisas que só você olhando de fora para entender - cada um no seu aparelhinho, dando risadinhas e se cutucando e mandando uns para os outros os videozinhos e imagens engraçadas durante duas horas seguidas – e me mostravam e eu às vezes até me esforçava, para não parecer tão "dissonante", mas em geral não conseguia entender qual era a graça daquelas piadinhas toscas ou daquelas imagens bizarras (em sua maioria, coisas nada inéditas, ou no máximo um pouco curiosas às vezes, vá lá, mas que haviam por algum motivo atingido uma aura, um status pop... Lembra, por exemplo, do Marco Véio? Um dos involuntários “precursores” dessa nova onda descerebrada – e, diabos, era um tal de taca le pau pra cá, taca le pau pra lá, taca le pau pra todo lado!... e eu só ia abaixando a cabeça, procurando não ser atingido... fazer o quê?).

Ah, mas que sujeito chato sou eu também, que não acha nada engraçado, praia, macaco, tobogã, Marco Véio, eu acho tudo isso um saco, admito!...

Mas, cara, seja como for, noves fora minha chatice em termos de humor, já ali senti que havia algo muito errado em curso aqui por estas nossas bandas. Sim, era possível se perceber que uma burrificação em massa estava em franco processo na nossa sociedade tupiniquim moderna. De alguma forma, a tecnologia, que havia avançado inacreditavelmente, possibilitando fantásticas alternativas de crescimento em termos de informação e comunicação, estava de alguma forma gerando uma terrível involução cognitiva (ou seja, os telefones estavam mesmo mais inteligentes – mas nós, cada vez mais burros...). Mas havia também algo mais (começo aqui ligeiramente então também meus delírios "sociológicos"): não era para eles a questão puramente da graça do meme em si; mas uma certa sensação de "pertencimento" também: o não sentir-se sozinho neste mundo; o fazer parte de um "time" - nem que seja o time dos memes...

Agora devo dizer – se você ainda não tinha sacado –, prepare-se: meio através de “metáforas”, mas este texto é sim sobre política.

Porque tenho a teoria que ali foi o começo de tudo - ou, o começo do fim... (da picada?...)

Eeee... corta!

 Bem, já que estou sendo deveras pretensioso com minhas teses, vamos agora a uma singela análise sociológica do brasilian (supostamentis) sapiens – ou seja, eu, tu, ele(não?)/ela, nós, vós, eles/elas... Por que não? (Isto é, por que não além do fato de eu não ter um diploma de sociologia? Bobagem... Já que todo mundo – ou ao menos todo o mundo facebookiano – atualmente é especialista em tudo, por que também não eu, pô? Só porque não rezo também para o Deus Zuckerberg? Rá! Vocês – quatro ou cinco leitores deste blog – vão ter que me engolir do mesmo jeito!...)

Pois bem... a tese, lá vai (ok, se quiser passar para uma parte mais “divertida”, e “metafórica”, pode pular para 4 parágrafos adiante!):

O caso é que o brasileiro, independente da classe social (e mesmo, caramba, do grau de instrução – inclusive, de acordo com pesquisa feita pelo instituto britânico Ipsos Mori, o brasileiro é o segundo povo no mundo (perdendo só para o sul-africano) com a visão mais distorcida da própria realidade... bem, a proliferação das famigeradas fake news, mesmo entre gente facebookiana/uatsápiana teoricamente instruída, só corrobora isso, não é mesmo?), parece transitar entre a falta de "cultura" e o medo, o que acaba gerando uma espécie de hipocrisia crônica nesse nosso povo – e, claro, diferente do que muitos pensam, uma gente em termos gerais deveras preconceituosa/egoísta.

Falta de cultura, pois educação, de melhor ou pior qualidade, até é oferecida em nosso país, todo mundo teoricamente tem acesso a ela, mas a questão é que percebe-se que mesmo aqueles que têm o acesso à melhor não conseguem dar “o salto” que só a reflexão verdadeira (através da famigerada "cultura" – o pensar de formas diferentes...), é capaz de permitir (então, se você engole todas as bobagens que lhe repassam no facebook e no uatsáp, sinto muito, mas não adianta nada sua formação superior, sua pós, seu mestrado, seu doutorado... você é instruído, mas burro).

E o medo é o medo mais primordial, da violência, sim, mas também o medo de parecer fraco, medo de admitir-se fraco (medo de admitir a fraqueza de não saber determinado assunto, por exemplo, que talvez seja o mais pertinente nesta avaliação... melhor ter certeza de tudo, não é mesmo, ainda que possa não ser a verdade verdadeira?), mascarando-o portanto com agressividade, ou seja, com mais violência, ou ainda, procurando "virar o jogo" não com argumentos mas com a sua tradicional "ginga" e "malemolência", com sarcasmo, ironia, através da  velha e boa malandragem (criticada mas, paradoxalmente, ao mesmo tempo, de certa forma, cultuada em nosso país – afinal, quem prefere, por exemplo, no dia a dia a convivência com o chato certinho ao invés do charmoso cara comunicativo e engraçado, ainda que este resvale um pouquinho para o “lado negro da força”?) e do politicamente incorreto, que, pois bem, é exatamente mais engraçado – e másculo!

Pois a propósito de chato certinho – e agora pulando diretamente para a área das “artes” – , lembro de uma história em quadrinhos da minha infância, dos Transformers, em que o Optimus Prime, chefe dos “mocinhos”, disputava com Megatron, líder dos malvadões, uma partida de uma espécie de videogame, era uma realidade virtual na qual os avatares dos dois se enfrentavam para decidir a guerra entre autobots e decepticons (para evitar mais destruição e mortes), e Optimus vencia Megatron, que devia então ser destruído na vida real com o simples apertar de um botão. Mas então, para surpresa de todos, Optimus diz que não pode ser assim pois trapaceou, pois puxou uma espécie de cano naquela realidade virtual, fazendo cair no abismo e morrer uma porção de pequenos seres que viviam ali... para incredulidade dos seus próprios comandados – e minha também, óbvio – Optimus dizia que ele é que devia ser destruído por ter matado aquelas criaturas que não existiam na realidade, e Megatron seguiria em frente, forte, belo e mau. Meio burrico, pragmaticamente falando, me parecia, mas, ao mesmo tempo, exemplo máximo de lisura e cavalheirismo que já vi, ao menos na ficção, e, bem, ainda que nem perto disso – furo sinal vermelho de madrugada, com a justificativa de não dar mole pra violência, colei muito durante os anos de estudante, já menti pra caramba nessa vida, ainda que sob a justificativa de “mentiras sinceras” etc – procurei de uma forma ou outra nortear ética e moralmente minha vida a partir de então de acordo com o mais próximo possível daquela lição de Optimus Prime.

E, buscando esse exemplo do líder dos Autobots, procuro sempre questionar carinhas que vêm com enfáticas opiniões, no mínimo polêmicas, mas supostamente engraçadas ou revolucionárias (ao menos nas cabeças deles...), se seriam eles capazes de defender essas ideias, que defendem ali no churrasco ou no futebol em meio aos outros carinhas (acredito que mais procurando reforçar a “moral” deles do que propriamente emitir uma opinião realmente sincera sobre o assunto), em um microfone, em um auditório diante de um público variado e desconhecido? E, talvez o principal, o fariam, defenderiam essas ideias, para um filho pequeno deles?...

Mas, com licença, a propósito de artes e voltando à tese, só que pulando dos quadrinhos para o cinema, o brasileiro mostra então toda sua hipocrisia mesmo, esta forjada sem que ele se dê conta através do medo e da falta de cultura, quando se sensibiliza por exemplo em situações bem retratadas na telona ou na telinha – diante do sofrimento de certas minorias, por exemplo (e nem vou adentrar na temática da Segunda Guerra aqui, para não "ferir sentimentos"...); o brasileiro emociona-se com filmes como “Dança com Lobos” e “A Missão”, mas, curiosamente, ignora, ou relativiza a questão, quando HOJE, na vida REAL, certos indivíduos que estão no poder ou marchando rumo a ele no país demonstram total desrespeito, por exemplo, pelos povos indígenas, e por outros grupos em situação de vulnerabilidade - sinto muito, mas não consigo evitar: minha "formação" obtida através da ficção também não me permite jamais voltar-me contra os "fracos e oprimidos"... (não, também não quero fazer o papel, mas, bem, talvez o que nos falte seja mesmo um Kevin Costner “vira-casaca” no que resta de nossas aldeias, não é mesmo?...)

Mas por falar em filmes, algo na atual situação do nosso país também me remete ao penúltimo Star Wars, o tal Despertar da Força... caramba, depois de tudo aquilo que passamos, com a vitória final dos rebeldes sobre o Império em O Retorno de Jedi, 30 anos depois (!) há uma sombria Primeira Ordem, querendo reimplementar aquele regime, com tudo o que se passou parecendo ter sido esquecido! (hey, criaturas facebookianas, assim como eu não quero acabar num calabouço por escrever textos como esse aqui, vocês também não querem levar porrada após terem seus textões debulhados por uns tiozinhos mal-humorados num porão, né? Não é 13, nem 17; é 2018, porra!!)... – o problema aqui, no entanto, é o risco de um desses grupos se apossar da ideia de que, tal qual naquele filme, seu messiânico Luke Skywalker também está “isolado” e sem nada poder fazer no momento (portanto, perdão, George Lucas! – Deixemos as guerras lá nas estrelas, já que temos a nossa própria aqui, entre elas...)

Pois ainda no terreno da ficção científica – agora me empolguei! – , às vezes sinto nos últimos dias também  inacreditavelmente estar vivendo um daqueles sombrios futuros alternativos de alguns filmes, como “Efeito Borboleta”, ou “De volta para o Futuro 2” (caramba, nossa mãe está prestes a casar com o imbecil do Biff, cara!! Vocês tão entendendo isso???)...

Seguindo em frente nas citações cinéfilas, para finalmente chegar na minha “profecia” (não comigo, mas pode também fazer a relação com o anticristo do filme de mesmo nome aí com o seu adversário político, seja ele qual for... tá valendo – já que já se joga, por exemplo, o nazismo/fascismo de um lado pro outro mesmo, com direito inclusive a contestações de brazucas a contextualização feita institucionalmente pelo governo da própria Alemanha, veja você!): há um tempo atrás, pensando nesse medo de se falar a verdade e de se falar sobre coisas realmente importantes, refletir realmente sobre elas, mascarando isso através do “humor” que me parecia proliferar como uma peste com os tais memes pela internet, cheguei a escrever, falando sobre a “burrificação” que vinha acontecendo através da tecnologia, que me parecia que haviam dado ferramentas poderosíssimas a primatas, parecia o monólito diante dos homens-macacos (ver Kubrick)... como dito antes, a tecnologia evoluindo absurdamente, a comunicação teoricamente sendo facilitada como jamais imaginado, mas cognitivamente o brasileiro involuindo abruptamente... e foi, e foi, e foi... até que uma geração cresceu, foi forjada, através da linguagem que prima nessas novas tecnologias, através especialmente do humor desses memes, que virou o norte deles – como talvez a lição do Líder Optimus tenha sido um dia para mim... assim, eles baseiam-se a respeito do que realmente importa através do que é simplesmente mais engraçado, cool, do que está em voga na rede, de quem faz mais barulho, ou até mesmo simples e masculamente politicamente incorreto... isso dá até votos, veja bem. Você não precisa de uma plataforma de governo. Você não precisa de propostas. Você não precisa sequer saber falar. Você pode dar simplesmente declarações “engraçadas” (ou “diferentes de tudo que está aí”) – batendo em minorias, que seja... Você tem que gerar “memes”. Você tem que “mitar”, como eles dizem hoje em dia. Só assim você chegará ao coração deles.

Artes? Para quê? Ler? Quem lê hoje em dia? Notícias, jornais? Para que, se tem o face e o uáts para nos dar as últimas e mais importantes da nossa bolha – e, especialmente, saciar nossa sede de pertencimento e homogeneidade – ?...

Então, aonde chegamos? A uma disputa entre uma Gang 90 e as Absurdettes (e me parece que estamos mesmo fadados a ficar “perdidos na selva...” aqui por estes nossos pagos) que a meu ver nem deveria estar participando dela – talvez devesse estar se refundando, ensaiando mais, corrigindo as distorções dos acordes dos últimos shows, talvez até mesmo mudando o nome da banda, enfim, revendo conceitos musicais etc – e um Exército de um Homem Só (mil perdões, caro Scliar, por essa associação! Mas sei que neste caso posso contar ao menos com o seu senso de ironia...), com a diferença que o Capitão (!) Birobidjan (além de ser um fiel e revolucionário seguidor dos preceitos do velho Marx, claro), após seus lunáticos discursos, recebia o aplauso entusiasmado tão somente de pequenos homenzinhos imaginários... e não, como acontece insanamente com esse “nosso” atual, inacreditavelmente ovação de um grande número de gente de verdade!

A "solução", para mim? Ainda que não o melhor dos mundos, pareceria-me bem óbvia (embora provavelmente tarde...): procurar algum caminho pelo meio – e, no fim das contas, o principal, o que nos resta, seguir nosso caminho de evolução através – além claro do básico estudo e informação, filtrada, ponderada – das artes (leitura, cinema, teatro...), buscando novas ideias ou adaptar/refrescar nossas novas velhas ideias.

Mas, como aparentemente a nova arte realmente valorizada em nossos tempos é o meme... fazer o quê, pode seguir tacando le pau, Marco Véio, se quiser – só, por favor, não pros meus lados, ok, amigão??...


sexta-feira, 24 de agosto de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Final" (Por Diego T. Hahn)


Algumas semanas depois, contudo, aquela desleixada sequência acabaria me custando mesmo o emprego: eu continuava não engraxando o bendito sapato, pecado capital mor na empresa, além de aparecer sempre com o cabelo desgrenhado, barba por fazer e gravata torta... Eles ainda me abordaram algumas vezes, tentando me convencer a mudar o comportamento, mas, após mais algum tempo, percebendo que aquela situação era um trem descarrilado ainda em alta velocidade, me chamaram para fazermos um tal “acordo”. Pagariam tudo a que eu tinha direito e eu saía numa boa, sem treta jurídica etc.

Topei. Parecia-me justo.

Após oficializar o desligamento da empresa com a assinatura dos documentos no setor de RH, saí então triunfal pela porta principal do hotel naquele dia, orgulhoso, com a sensação do dever cumprido (embora menos pelo efetivo cumprimento do dever  e mais por essa oficialização da demissão), piscando e acenando com a cabeça para os ex-colegas que, eu percebia, me observavam com uma certa admiração no percurso pelo corredor da recepção – ou talvez fosse impressão minha, graças ao meu estado de espírito leve, e na verdade eles me olhassem era com “pena”... Severo, ao menos, eu via que certamente tinha um ar um pouco triste – talvez pela perda do seu “sócio”.

Fosse como fosse, ao chegar à escadaria que levava a calçada, ao mundo “lá fora”, desamarrei o nó da gravata e a puxei do pescoço. Desci os degraus vagarosamente e, ao chegar lá embaixo, joguei a gravata para o alto – o mais alto possível, tão alto quanto o osso do homem-macaco de 2001 que em seguida se transformava numa nave no espaço sideral - e segui caminhando, sem olhar para trás – com aquele gesto, eu também sentia que estava dando um salto no tempo, rumo ao futuro...

Não tinha ideia do que iria fazer a seguir e aquilo deveria me atormentar, mas não naquele momento; não, naquele momento aquilo me deixava era quase eufórico: eu não tinha ideia do que iria fazer e aquilo não me importava nem um pouco naquele momento...havia tantas possibilidades! Mas, mais importante do que elas, havia simplesmente aquele momento, no qual eu era o dono do mundo. O dono do meu mundo. Um mundo de incertezas, mas um mundo novo, inexplorado, um novo velho oeste (embora com a possibilidade tanto do ouro como do faroeste) no meu horizonte, e, enfim, um mundo todo meu, ainda que talvez só por alguns dias, ou mesmo horas ou minutos, pois logo, de um jeito ou outro, a vida viria me arrebatar lá fora com mais alguma das suas. Mas naquele momento, ainda que sem Kate Winslet (e ainda que ciente do provável destino parecido da minha nau pessoal na sequência), eu era Leonardo Di Caprio de braços abertos pendurado na proa do Titanic...

Fechei os olhos e senti então aquela brisa bater no meu rosto. Abri bem o colarinho e, soltando um longo grunhido de satisfação, finalmente consegui respirar fundo e senti aquele oxigênio invadindo minhas narinas, inundando cada ponto do meu organismo; respirar fundo, como se a minha alma voltando ao corpo, como se eu finalmente despertasse de um sonho, um sonho divertido, sim, mas como se voltasse à vida depois de um longo sono; respirar fundo, enfim, como há muito não respirava.

EPÍLOGO

(Alguns meses depois... o osso que vira nave... e vira osso outra vez)

Como a vida às vezes nos apronta algumas peças e o destino é também um sujeito um tanto quanto irônico, por uma série de fatores que formariam uma longa e interessante nova história mas que não vem ao caso mencionar aqui para não nos desviarmos do nosso foco principal, estava eu outra vez numa entrevista de emprego.

Em um hotel.

- Então, Sr. Marco...  – dirigia-se a mim o gerente, aparentemente empolgado – vejo que tem boa experiência na área... fale-me pois um pouco sobre ela...

Acomodei-me melhor na cadeira.

- Bem – afrouxando ligeiramente o nó da gravata, respondi – humm, vejamos... por onde eu poderia começar?...


Fim  (...?)


(Agradecimentos: aos chefes, pela oportunidade, e especialmente aos colegas malucos e clientes *%¨#¨%@, pela inspiração!)


sexta-feira, 17 de agosto de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Parte 10" (Por Diego T. Hahn)


Pois com o tempo então comecei a relaxar de vez. 
Chegou um ponto em que já estava de saco bastante cheio de quase tudo e todos por ali, embora por um outro lado paradoxalmente gostasse ainda de trabalhar lá, é verdade – ao menos, gostava ainda de estar lá – , gostava dos papos sem pé nem cabeça com os mensageiros, gostava das bandas de Camaro e BMW, você sabe... mas estava cansado daquele terno, por exemplo, e mais do que dele estava cansado daquela maldita gravata, aquele símbolo-mor da opressão capitalista, aquela espécie de coleira, e estava cansado da minha cara com aquela pele lisa como bunda de bebê e daqueles sapatos brilhantes e daquele meu cabelo com gelzinho bem penteado. 
Assim, comecei a relaxar e, devo dizer, logo passei a me sentir realmente bem melhor ao começar a aparecer no hotel com a barba por fazer e o cabelo meio desgrenhado, como um homem de verdade. 
E o principal de tudo: olhava-me no espelho e, pela primeira vez desde que começara a trabalhar lá, sentia que aquele era eu de verdade. 

Na madrugada, com o intuito de prosseguir nesse privilégio do conforto em detrimento das aparências, comecei a ir trabalhar de tênis: um par preto, estrategicamente, para não correr o risco de ser detectado pelas câmeras de segurança – que obviamente estavam lá, afinal de contas, não para cuidar da nossa segurança mas sim para nos vigiar (para quem acha que seja exagero: antes de eu trabalhar lá, recepcionistas da madrugada tiveram armas apontadas para suas fuças em assaltos – mais de uma vez – , mas as tais câmeras só foram instaladas anos depois, quando suspeitou-se que alguns outros colegas andavam fazendo lanchinhos noturnos na cozinha do restaurante e cochilando nos sofás da recepção...), e cuja definição não era tão clara a ponto de detectar o tipo de calçado lá no pé do vivente.

Afrouxava então a gravata, tirava o casaco do terno, e ia jogar sinuca com o mensageiro na sala de jogos.

- Tu tá louco, cara? – perguntava-me o colega, indo meio arrastado, olhando para trás em direção à recepção. – Mas, e se...

Eu lhe respondia, genericamente, que não tinha galho (o que diabos queria dizer aquilo, na prática?...) e, ao chegarmos lá, eu tirava do bolso da calça uma latinha de cerveja e a abria.

- Cara, tu tá doido! – apavorava-se ele, então passando da interrogação para a exclamação.

- Calma, meu... toma aí... – eu respondia-lhe serenamente, tentando tranquilizá-lo, e começava a contar-lhe minha história no hotel, meu “aprendizado” lá com o velho Zeca e tal, as partidas de videogame, a viola, ao que ele pouco a pouco começava a relaxar e logo estava rindo também. – Nada é tão importante assim, meu velho... – concluía eu, enquanto acertava a oito na caçapa do fundo. “Chupa que é de morango! Ajeita as bolas aí de novo, filhão...”

Depois da terceira partida (2x1 para mim – deixei ele ganhar uma para levantar a moral do magrão e não estressá-lo tanto com a participação naquela “contravenção”) o mensageiro voltava então para a recepção para conferir se estava tudo bem por lá e deparava-se com um considerável número de hóspedes do lado de fora, batendo à porta para entrar. Há quanto tempo estariam lá? Ele se apavorava novamente então. Vou perder o emprego assim, cara!...

- Tu acha outro – eu lhe dizia, pragmática e filhadaputamente.

A verdade, como eu disse antes, é que já não estava mais nem aí para nada, mas não podia mesmo envolver meus colegas nessa. Assim, comecei a chamar alguns amigos de fora para me acompanhar na sinuca nas madrugas, deixando o mensageiro lá cuidando da porta...

Nessa toada, certa noite éramos sete na sala de jogos, bebendo e fumando charutos – havia uma espessa nuvem de fumaça sobre a mesa de sinuca – e alguém fatalmente mencionou que só estavam faltando as meninas. Algum outro canalha ligou então para uma garota – enfatizando que ela devia levar as amigas junto. 
Pronto, era só o que faltava.

Logo, pois, chegaram as moças – algumas, aparentemente um tanto quanto perversas demais, devo admitir, que chegaram a preocupar até a mim um pouco pelo andamento da coisa toda... -  e então la fiesta empezó de vez (sim, a certa altura, por algum motivo que não me lembro qual, falávamos também só em portunhol por ali...). O mensageiro voltava então a ficar aterrorizado.

- Fica frio, cara... se der problema, digo que tu não tinha nada a ver... – tentei tranquilizá-lo. Em seguida, porém, deixei-o à vontade para participar da festinha, se quisesse: - qualquer coisa, é só chegar ali... viu aquela ruiva que acabou de entrar? – sorria-lhe, ao que o rosto do capeta se iluminava e logo ele estava lá com a gente, bebendo e fumando, e em seguida agarrado na tal ruiva como se fosse a última daquele espécime de cabelo vermelho do mundo, enquanto na porta da frente do hotel os hóspedes se acumulavam, furibundos.

Na tarde seguinte, chamados eu e o colega pelo gerente para “conversar”, expliquei que aqueles eram amigos meus, tentei comovê-lo dizendo que estávamos bebendo, fumando e jogando em homenagem a um outro amigo, que havia falecido no dia anterior, e tentei tirar o corpo do mensageiro fora, dizendo que ele só abandonou a recepção e foi até a sala de jogos para tentar fazer a gente baixar a bola e meus amigos irem embora – até onde soubéssemos e pudéssemos ver, na sala de jogos ao menos não havia câmeras, graças ao bom Deus dos recepcionistas e mensageiros – , ao que acabou inclusive discutindo por um longo tempo com a gente e mesmo saindo na mão com um dos caras (na noite anterior cheguei a propor para o colega enfiar-lhe a mão na cara, para a coisa ficar mais fidedigna, se fosse o caso, mas ele recusou)... o gerente absolveu o mensageiro, mas eu não escapei de uma advertência, provavelmente mais pelo fato de estar com a barba por fazer e o cabelo bagunçado. Ah, há dias não engraxava os sapatos também – até porque, como dito antes, andava indo trabalhar de tênis... – , o que percebi ter sido o que mais o deixou brabinho de toda a história.

“Aquele filho da puta!”, na sequência da tarde esbravejou também furioso para mim o mensageiro - inclusive fazendo-me ter de segurá-lo por um instante - , referindo-se ao gerente, mas não pela tremenda reprimenda que levamos e sim como reação após eu lhe contar que, ao passar ao lado da sala da gerência num momento que o cabeçudo não estava lá dentro (depois concluí que devia estar no banheiro - e não cagando ou mijando) e olhar meio de revesgueio foi possível perceber, ilustrando a tela do computador do sujeito, no máximo de zoom possível, a imagem congelada da nossa querida ruivinha do evento da madruga anterior...

(Continua)

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Parte 9" (por Diego T. Hahn)


Pois a propósito de figuraças, tive dois outros colegas que também marcaram época nos poucos meses que ficaram com a gente no hotel - ambos tendo começado "enganando bem" e terminado sua passagem por lá de forma estrondosamente negativa.

O primeiro, Roger, era um sujeito que costumava tratar todo mundo com sorrisos e fala mansa e todo um gestual que, embora conseguisse fazer parecer natural, com o tempo percebíamos que era minuciosamente pensado e preparado, e, estrategicamente, refinou ainda mais esse tratamento com determinados hóspedes para assim garantir polpudos elogios ao seu trabalho (era o seu objetivo descarado - e quase declarado: largava algumas piadinhas às vezes deixando subentendido, nas entrelinhas, que julgava-se capaz de passar a conversa em meio mundo mesmo... e, diabos, por vezes, parecia realmente ter essa capacidade), elogios esses que inevitavelmente acabavam chegando à direção. 

Por isso, tinha relevados pelos chefes seus também constantes atrasos e as volumosas críticas que recebia de outros tantos clientes do hotel sobre falhas "operacionais" suas - esquecia de passar recados, fazer reservas etc - , sendo eventualmente apenas chamado para conversar sobre o acontecido, no que sempre acabava por convencer o gerente – ou mesmo o proprietário – da sua “inocência”. O cara era mesmo bem articulado, tinha o diabólico dom da oratória, e sabia complementá-lo com uma voz macia, um sorriso na medida certa - sem parecer muito bajulador e aparentemente jamais mau-humorado - e gesticulando também com certa graça. Além do mais – e talvez seja o que os cabeças (na verdade, nem tão cabeças realmente) mais valorizavam – o canalha estava sempre impecavelmente vestido, roupa bem passada, cabelo bem penteado, barba bem feita, sapatos lustrosos. Com aquela beca, ele dizia rindo para nós, num daqueles poucos momentos que deixava as guampinhas um pouco mais aparentes, que sabia poder mandar os hóspedes tomar no rabo, se quisesse, que se safava.

Estivesse lá e provavelmente aquele nosso ex-colega europeu faria uma outra avaliação sociológica a respeito, considerando aquela uma boa amostragem daqueles que se destacam na nossa sociedade tupiniquim como um todo, pois, nessa sua toada, Roger foi mesmo ganhando moral e chegou a ser cogitado para uma posição de chefia... antes de descobrirem, digamos, uns ilícitos seus relacionados ao caixa da recepção. 

Ainda assim, ao mandá-lo embora percebi que os chefes lamentavam por ter de fazê-lo, provavelmente pelo fato de o cara se expressar mesmo tão carismaticamente bem e tê-los (sob certo aspecto, irreversivelmente) seduzido – mas, especialmente (eu percebia que olhavam fixamente para seus pés), por aqueles sapatos tão bem lustrados, caramba!...

Já um outro colega, Johnny, também deixou sua marca lá – esta, literalmente, bem menos sutil (na fuça de um outro colega!)...

Johnny era mensageiro e certa época estávamos trabalhando juntos. No início, tal qual Roger, o cara era extremamente cuidadoso nas palavras, nos gestos, no comportamento em geral... mas pouco a pouco começou a mostrar uma outra faceta sua, um  tanto quanto curiosa.

Tudo estava em silêncio, por exemplo, ali pela recepção, só nós dois na área, eu digitando no computador, e de repente eu ouvia uma gargalhada. Daquelas de ressoar em toda a recepção.

Olhava para trás e lá estava Johnny balançando a cabeça e, referindo-se a mim, dizendo para si mesmo “esse Marcão é uma figuuuuuuuura, cara...”.

Outra situação típica dos tempos de Johnny por lá era quando passava algum ser do sexo feminino, não importando idade, cor ou tamanho, e ele largava, com um sorriso de canto de rosto, sempre outro indefectível bordão seu: “e aí; te animava, Marcão?... Hein? Hein!?” – como indagando se eu teria ânimo de encarar sexualmente a referida criatura.

Certa vez, ainda, o movimento era grande e dois mensageiros, ele, Johnny, e Luciano, trabalhavam juntos para dar conta do entra e sai de carros. Era um sobe e desce frenético da recepção para a garagem e vice-versa, para retirar os veículos dos hóspedes que estavam saindo e guardar aqueles dos que estavam chegando, e eu observava Luciano sem parar naquela via crucis, Luciano que subia, Luciano que descia, Luciano que corria de um lado para o outro, Luciano que suava feito um porco, e subia também para levar bagagens de hóspedes nos quartos, enquanto, curiosamente, Johnny caminhava lentamente pelo saguão, balançando a chave de um carro na mão e conversando tranquilamente com algum hóspede, e dava risadas – provavelmente de alguma piada que ele mesmo havia contado – , depois desaparecia por alguns minutos, ressurgia tranquilão do bagageiro, pegava um copo d´água, tomava um gole, largava um “aaaaaaahhh!” com a boca bem aberta, pegava outra chave de carro que estava sobre o balcão da recepção, ficava olhando para ela por alguns instantes, descia caminhando lentamente para a garagem, voltava perguntando de que carro era aquela chave e de repente desaparecia de novo, enquanto Luciano reaparecia da garagem se arrastando com três chaves de carros nas mãos e me perguntando onde estava a chave do Peugeot que estava trancando a saída da garagem – e, mais importante, onde diabos estava o Johnny???????!!!!!!!...

Mais tarde, quando o movimento cessara, estavam os dois lado a lado na recepção; Luciano esbaforido, camisa toda empapada e buscando o ar, enquanto Johnny assobiava e tamborilava os dedos no balcão da recepção e a certa altura, olhando para mim, passou a mão na testa como limpando o suor e largou esta: “Tchêêêê... que correriiiia, hein!?”.

Johhny começou a atrasar e faltar muito ao trabalho e, após ser cobrado por um outro mensageiro, Vander, sobre esses seus atrasos e faltas (Vander acabava tendo que ficar mais do que deveria no seu turno em função da falta de pontualidade exacerbada ou das ausências de Johnny...), protagonizou uma cena de boxe em meio a uma troca de turno logo no início da manhã com esse colega. Johnny enfiou um cruzado de esquerda (uma coisa que nunca entendi bem foi por que de esquerda, já que não era canhoto...) na cara do indivíduo, justamente diante da porta de entrada e embaixo de uma das câmeras de segurança do hotel.

Inevitavelmente cada funcionário que chegava no trabalho aquele dia dava uma passadinha na sala da gerência para conferir o vídeo e dar boas risadas, como se fosse uma daquelas videocassetadas da tv, protagonizada - que orgulho! - pelos nossos dois colegas.

E assim, no dia seguinte, no lugar de Johnny eu tinha um novo colega lá...

Mas... como diabos eles conseguiam mais gente para colocar lá? De onde eles saíam??, voltava eu a me indagar.

Um gerente que lá trabalhou certa vez falou em uma reunião que deveríamos valorizar mais nosso trabalho no hotel, afinal estávamos lá dentro, no bom do ar condicionado, num ambiente elegante, e os trabalhadores braçais que passavam ao sol lá fora olhavam lá para dentro e nos invejavam, a nós nos nossos ternos e gravatas e sapatos bem lustrados. 

Pois pensei comigo na ocasião que sim, eles nos invejavam pelo fato de acreditar – você sabe, as aparências... –  que ganhávamos O DOBRO do que eles ganhavam ou algo assim, e nunca imaginariam que a situação fosse exatamente o contrário: como dito num capítulo anterior, as pessoas em geral costumavam achar que ganhávamos dois, três mil reais no hotel, quando na verdade ganhávamos por volta de um mísero salário mínimo lá...

Mas, enfim, assim seguíamos em frente - ao menos com nossos ternos, gravatas, sapatos e penteados impecáveis...

O requinte de crueldade, no entanto, estava no fato de ainda por cima termos de trabalhar de pé o dia todo – “como cavalos”, bufava um colega frequentemente – , sem nunca poder sentar; não tínhamos sequer um banquinho à disposição na recepção. Eu nunca entendi bem o por quê; ninguém nunca explicou direito aquilo. Ouvi alguns rumores, sim, sobre alguns ex-funcionários que acabavam ficando sentados o tempo todo, inclusive diante dos hóspedes e tal, numa época remota quando havia cadeiras ou bancos lá... não sei. Era uma espécie de lenda, lenda urbana, do Terrível Sentador da Recepção, que sentava o tempo todo na cadeira, e sentava no balcão, e sentava sobre os computadores e sobre os hóspedes e tudo o mais que cruzasse pela frente...

Lembrava-me do meu emprego anterior, no qual ficara somente cerca de três ou quatro meses. Era um hotelzinho bem simples, um dois estrelas – ao contrário desse outro no qual trabalhava já há alguns anos, que era um quatro estrelas – , mas lá, naquele suposto muquifo, lidava na recepção numa confortável cadeira de couro reclinável e giratória, tinha que vestir uma camisa, uma calça e sapatos, certo, mas ninguém ficava também controlando muito detalhada e obsessivamente meu fardamento ou alguns pelinhos no meu rosto, e ganhava comida, e ganhava mais ou menos o mesmo salário que no outro... não que quisesse voltar a trabalhar lá – não, em termos gerais nessa vida não costumo considerar essa possibilidade, de voltar atrás, retroceder; ainda que muitas vezes possa mesmo ser tentador, creio que devemos sempre andar para a (suposta) frente – mas a questão que eu me impunha era exatamente essa:

Cara, sapatos lustrosos e barba bem feita à parte, havia eu realmente evoluído?...

(Continua)


sexta-feira, 13 de julho de 2018

"Cuidado com o que desejares... (ou: "Uma vida irrefletida não vale a pena ser vivida")" (Por Diego T. Hahn)


Buenas, pedindo antes de mais nada licença para os fiéis 5 (4??) leitores do "De Letra", fazemos agora um breve intervalo na trama do nosso anti-herói-recepcionista (Coxinha? Mortadela?) Marco (pô, além do mais, em plena Copa, Diegão? Logo tu que é dos fut!?... onde estão ao menos então coisas como "Pra não dizer que não falei da Copa", por exemplo?? - bem, quem quiser sacar a ideia desse hipotético questionamento de um mais hipotético ainda fã do blog, basta um click no link a seguir para voltar 4 anos numa divertida viagem no tempo - embora certamente algum tanto ali se perca hoje em função de referências a situações melhor saboreadas com o frescor do momento de então - : http://deletradj.blogspot.com/2014/07/), mas esta pausa - com o perdão pela involuntária rima rica a seguir - é por uma suposta "boa causa" (com a possível pretensão, bem sabemos, que tal intervenção - ôpa, olha aí desde já, embora também involuntário, mais um daqueles trocadilhos que tanto amamos aqui - possa denotar... uaréva!), visto que o atual momento do nosso país tropical parece tornar quase imperativo este texto, digamos que mais "informativo" do que "literário" (embora talvez seja também tão pretensioso arriscar-se com o primeiro quanto com o segundo...)

Quanto à frase (a primeira, fora do parêntese) que dá título a esta humilde crônica, bem, a primeira vez que ouvi ela foi da boca de uma amiga há muitos e muitos anos atrás e - clichês que justificam o nome - lembro que ela imediatamente me marcou, e  fato é que inevitavelmente desde então lembro da mesma sempre diante de situações nas quais ou eu ou algum outro ser - supostamente pensante e sem dúvida bastante desejante - deseja muito ardentemente uma determinada coisa (ou pessoa), sem considerar a variável da avalanche invisível que pode estar escondida, aguardando simplesmente pelo aparentemente inocente lançamento, como numa brincadeira, da bolinha de neve em direção ao tal objeto de desejo inicial, para começar sua avassaladora e incontrolável carreira montanha abaixo...

Curiosamente, pois, dia desses - era um daqueles dias em meio à greve dos caminhoneiros - deslocávamos eu e um camarada, Pablito, para uma partida de padel pela Avenida Medianeira em Santa Maria City, ele no volante, eu na carona, quando fomos interrompidos por uma passeata, supostamente contra a corrupção, e a favor de um determinado candidato - e, de lambuja, da tal da intervenção militar - , aquela coisa toda, você sabe...

Pois Pablo ficou furibundo - estávamos já atrasados para o jogo - , como nunca imaginei que o cara pudesse ficar, pelo fato de o "interrompidos" que usei acima se referir a essa galera da passeata - bandeirinhas do Brasil sendo balançadas pela janela dos carros - simplesmente ignorar o sinal vermelho para eles e fazer o contorno na Avenida, conturbando completamente o trânsito na região e arriscando inclusive acarretar algum grave acidente!...

Pablo vociferava todos os tipos de impropérios contra os "protestantes" - isto é, protestava contra a falta de respeito às regras dos protestantes, que protestavam contra a falta de respeito às regras em geral no país... tá entendendo?...
Eu? Putz, confesso que achei engraçado e só ri da surrealidade da situação - quanto ao jogo, nem estava na mesma pilha que ele naquele dia, estava indo só "na parceria" (embora, demonstrando-me inesperadamente inspirado ao entrar em quadra, acabasse destruindo com a partida!...) - , pois era realmente bizarro todo aquele espetáculo, que acabou me fazendo por tabela lembrar de uma matéria (da revista Super Interessante - ou Super, para os íntimos; você sabe, a irmã mais velha e mais séria da Mundo Bizarro... publicações coxinhas? Mortadelas?) que lera há algum tempo e, despertando minha curiosidade, resolver procurá-la na sequência para dar uma nova conferida em alguns pontos da mesma...

Pois bem... tendo-o feito dia desses - isto é, relido a tal matéria (na verdade, é uma edição inteira especial, intitulada "21 mitos sobre a Ditadura Militar") - , me ocorreu de reproduzir aqui então algumas considerações que lá reencontrei e que acho deveras pertinentes (como dito antes, dado o nosso momento tupiniquim de afirmações a altos brados sem maiores reflexões e aprofundamentos em dados e estatísticas e História com agá maiúsculo...).
Sei que alguém pode protestar, alegando se tratar de "conspirações da grande mídia", que há interesses por trás etc, mas, ainda que aqui esteja um cara que também curte uma boa teoria da conspiração e não confie 100% em NENHUMA informação que recebo - sinto muito, sou desconfiado mesmo - mas digamos que confio em torno de 20% em "notícias de internet" (e próximo de 0% em notícias de facebooks e uáts)... já em publicações "de papel", dessas mais tradicionais - que inegavelmente têm suas "tendências", mas têm também suas responsabilidades e podem ser rebatidas formalmente e penalizadas até mesmo - minha confiança aumenta um pouco - procurando sempre filtrar, mas, enfim, considerando estas as informações mais próximas da realidade (ainda mais confrontando-se com aquelas do mundo virtual e informal, digamos assim...).

E aproveito aqui para embasar esse meu apego à "bibliografia" tradicional em detrimento às novas mídias - na linha "dos males o menor" - citando o filósofo - pra dar uma moral no texto, né!? - Pondé (Coxinha? Mortadela?...), o qual assisti há poucos dias na capitarr dizer que a revolução digital na área do jornalismo ou pseudo-jornalismo não tem só ganhos, como muitos veem, e, como muitos começam a perceber, entre outras questões, a das famigeradas fake news é uma praga difícil de se combater, especialmente nas mídias sociais, onde qualquer um pode dizer o que bem entender (a parte boa seria a liberdade, não? A famosa e tão incensada e tão preciosa liberdade de expressão, um grande poder... mas, como diria tio Ben - só para dar uma outra moral extra aqui nesta humilde crônica, procurando ainda pouco a pouco tecer a teia na qual gostaria de enredar o caro leitor - , grandes poderes, você sabe, trazem grandes responsabilidades...)... Pondé menciona também exatamente que, para o bem, para o mal, os meios tradicionais de comunicação, com seus gatekeepers, têm suas "orientações", mas não podem simplesmente transcender a realidade, criando universos paralelos, como exatamente os criados nas redes sociais da vida...

Pois bem. A matéria é mesmo bastante interessante (tentei fugir do pleonástico adjetivo, mas não achei outro - bom, ao menos tirei o super, né) e a verdade é que pondera tanto para um lado como para outro (até porque nada é totalmente bom nem totalmente mau, não é mesmo? - embora, exatamente por isso, possivelmente irritando e agradando, alternadamente, mortadelas e coxinhas), buscando desmistificar certas "verdades" sobre o período de governo militar no Brasil, questionando os mitos em tópicos como "Jango era habilidoso como líder", "O Brasil ia virar uma nova Cuba", O golpe foi obra dos quartéis", "O golpe foi criado pelos EUA", "A luta armada era democrata", "Estudantes sempre se opuseram", "O Milagre foi uma mentira", "Os generais eram pró-Mercado", entre outros...

Vamos nos ater aqui, contudo, a dois, que são dos mais acionados pelos defensores de uma nova intervenção militar no país: "Na época, não tinha corrupção" e "As cidades não eram violentas", abordando dois males de proporções atualmente enormes que atormentam todos nós, cidadãos "de bem" (inclusive aqueles que furam sinal vermelho na cara dura, atrapalhando todo tráfego e arriscando aumentar os números da violência no trânsito...).

No primeiro desses dois tópicos, a matéria enfatiza que, embora os presidentes da época aparentemente tenham mesmo procurado manter a linha no sentido de não aproveitar-se do erário público ("Os únicos patrimônios de Castelo Branco eram um Aero Willis preto e um imóvel em Ipanema. Médici desviou o traçado de uma estrada para que ela não valorizasse suas terras. Quando Geisel assumiu a presidência da Petrobras, sua mulher quis um apartamento novo. O general disse não. 'Se comprar esse apartamento, vão logo dizer que estou roubando' "), o que vinha abaixo deles se esbaldava igualmente como o faz a catrefa de hoje em dia ("Assim que assumiu a presidência, Castelo prometeu uma grande devassa. Não conseguiu. 'O problema mais grave do Brasil não é a subversão; é a corrupção, muito mais difícil de caracterizar, punir e erradicar', disse meses depois de criar a Comissão Geral de Investigações (CGI), que investigava acusados de subversão e de corrupção. Opositores perderam os direitos políticos; corruptos se adaptaram")... De 1968 a 1973, conforme a matéria, essa Comissão produziu 1.153 processos, tendo mais de mil desses sido arquivados, e o principal problema não era apenas a falta de eficiência da mesma, mas também sua "seletividade" (qualquer semelhança com a realidade atual obviamente não é mera coincidência...). "Aos amigos, o silêncio. Foram arquivadas sem investigação denúncias contra os então governadores José Sarney (MA) e Antônio Carlos Magalhães (BA). Já aos inimigos, a lei. No processo contra Brizola, a CGI escrutinou suas declarações de bens desde 1959, quebrou seu sigilo bancário, verificou seus imóveis - e não encontrou nada de errado. Ou seja, quanto menos democrático um regime, mais o combate à corrupção se confunde com perseguição".

Para não alongarmos também demasiadamente nessa questão (poderíamos mencionar ainda a da corrupção de uma rede de colaboradores da repressão, como "juízes que aceitavam processos absurdos, confissões desmentidas e perícias mentirosas", e médicos que dispunham-se a fraudar autópsias e autos de corpos de delito) mais duas interessantes situações abordadas nesse sentido: uma, a do fim da esquerda armada a uma certa altura, o que não justificava mais a existência dos antigos agentes da repressão, que precisavam de uma nova razão de ser, tendo então muitos ido para a atuação na "segurança particular", e outros para o contrabando de mercadorias, como o capitão Guimarães - um dos mais notórios torturadores do DOI-Codi do Rio de Janeiro - , que teve suas atividades ilícitas descobertas pelas autoridades cariocas no final de 1973, com a acusação englobando no esquema 14 militares, 8 polícias civis e alguns comerciantes. Esses réus chegaram a ser presos, porém o processo foi anulado. O motivo? Acredite: os acusados alegaram ter sido torturados... (acho que foi por isso que me veio à cabeça essa matéria enquanto eu via desfilar aqueles protestantes contra a corrupção que furavam o sinal vermelho e pediam intervenção militar...) De qualquer maneira, o capitão Guimarães era brasileiro e não desistia nunca: acabou a luta armada? Vamos para o contrabando! Acabou o contrabando? Ué, jogo do bicho, mermão!...
Sim, quando você se empolgar ao ver a Vila Isabel entrando na Sapucaí no próximo carnaval, lembre-se que ela foi a escola adotada pelo bicheiro que, com suas antigas táticas de espionagem e repressão, logo transformou o bicho numa verdadeira organização militar...

A outra situação - não menos irônica - é a do disparo nos lucros das grandes (até então médio ou pequenas) empreiterias, como Andrade Gutierrez e Odebrecht, após mais e mais contratos passarem a surgir com o governo da época - as obras da Odebrecht, por exemplo, talvez principal símbolo do atual momento de tentativa de combate a essa prática das trocas de favores entre público e privado, antes do governo militar mal ultrapassavam as fronteiras da Bahia, mas, com os contratos que passaram a se suceder a partir do governo Costa e Silva, começou a dar saltos gigantescos e, de décima-nona empreiteira de maior faturamento no país em 1971, subiu ao pódio, passando para a terceira posição, em 1973. Nada mal, não? (Não, acho que foi POR ISSO que lembrei da matéria enquanto olhava para os caras que furavam o sinal vermelho criando aquele caos no trânsito: eles protestavam contra as sacanagens envolvendo políticos e a Odebrecht pedindo intervenção militar... sendo que a intervenção militar fora quem criara a "maligna" Odebrecht. Irônico, não?).

Passando ao outro tópico, o da suposta não-violência na época do Regime, a matéria diz que até o início dos anos 1960, a taxa de homicídios no país girava em torno de 5 para cada 100 mil habitantes - um número considerado razoável, ainda "sob controle". A partir da década de 60 então a taxa começou a crescer, antes mesmo da ditadura, e agravando-se durante o regime militar devido aos grupos de extermínio instalados dentro do próprio Estado.

No caso, o que acontecia era que até ali, início dos 60, a maioria dos homicídios acontecia dentro de casa, graças a crimes passionais, desentendimentos entre parentes e conhecidos etc. Até então, o homicida não era considerado o bandido - não, ele era a mosquinha que sobrevoa o cocô do cavalo do bandido. Algo inaceitável, inconcebível. 

"Mas o homicídio ganhou um novo significado na São Paulo do fim dos anos 1960. 'A figura do bandido, em oposição à do trabalhador, tornou-se ameaçadora a ponto do seu extermínio ser desejado ou tolerado', afirma Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP. O homicídio tornou-se um método de limpeza e controle social, e o homicida, um herói em defesa da comunidade."

Pronto. Estava aberta a porteira.
No final dos 60 então, sob o comando do delegado da Polícia Civil Sérgio Fleury, formara-se o Esquadrão da Morte, primeiro grupo paulista com o explícito propósito do extermínio de bandidos comuns. Em 1970, de acordo com pesquisa da Veja (Mortadela?...), 60% dos paulistas se diziam favoráveis às ações do grupo. 
E, na esteira desses grupos, que tinham a parceria da PM (que por volta de 1975 já não tinha a guerrilha armada para combater e passou a priorizar o patrulhamento ostensivo das periferias - usando, claro, como principal ferramenta de controle territorial a morte), surgiram igualmente os justiceiros privados, que tinham a chancela de comerciantes e da própria polícia, e começaram também eles sua matança em bairros periféricos.

Lembra da avalanche? Pois, segue a matéria, "o extermínio teve um efeito colateral imprevisto - aumentou a criminalidade nas periferias. Isso por dois motivos. Primeiro, o homicídio inicia uma cadeia de vinganças. Numa pesquisa de 2012, Manso descobriu que uma rixa iniciada em 1993 no Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo, levou a 156 mortos em cinco anos. 
Outro fator é que a imagem de corpos largados nas ruas, enterros de amigos e parentes e conversas sobre tiroteios tornam o homicídio um meio possível para resolver disputas ou reagir a ameaças. 'Conflitos banais, como o galanteio à namorada de terceiros, brigas em bar ou olhares enviesados podem ser suficientes para despertar o medo da morte', afirma Manso. E quem teme morrer se previne matando antes.
O auge da violência urbana só viria 14 anos depois do fim da ditadura. Mas isso não fez da ditadura uma época de paz nas ruas. Foi um período de violência urbana crescente. Acima de tudo, foi a incubação de uma geração de jovens prontos para matar uns aos outros."

O que me fez lembrar também uma reflexão de alguém (que, confesso, não me lembro quem era...) numa rádio dia desses (mas seria um coxinha ou mortadela esse cara, afinal?...) sobre a questão da indiferença - ou, pior, o incentivo - com as mortes e/ou chacinas acontecidas em prisões, entre os próprios presos... o tradicional "ah, que se matem tudo lá dentro!" que a nossa classe média especialmente parece ter se acostumado a proferir, mecanicamente. Olha, eu, também, se fossem os poderosos do crime, os homicidas hediondos, e outras criaturas malignas, a serem as vítimas dessas matanças, provavelmente apoiaria esse processo - ainda que ele incorra de qualquer maneira naquele efeito colateral...

Mas, ok, vamos analisar, agora, racionalmente (segurando um pouquinho o automático "que se matem tudo lá dentro!"): as facções estão bem protegidas lá, certo? Os poderosos delas, os poderosos do crime, dificilmente serão atingidos lá, certo? Quem morrerá majoritariamente então serão os bandidinhos que não têm filiação, os solitários, os ladrões de galinha (que serão decapitados para servir de exemplo, pra não dedurar etc - e porque alguém tem que ilustrar o lance na capa do jornal, porra; fazer o quê??)... e a gente vai seguir indiferente ao aumento dessa matança, acreditando que os criminosos estão se acabando todos entre si lá dentro - quando na verdade eles estão se FORTALECENDO, ganhando a carta branca para matar, trucidar, ou seja, banalizando ainda mais o homicídio... o que refletirá do lado de fora e no comportamento que manterão quando também eles estiverem novamente aqui, entre nós, cidadão "de bem" (inclusive aqueles lá...) e supostamente pensantes... (lembre-se que até o início dos anos 60 o homicídio era um crime "inaceitável", e as taxas eram portanto baixíssimas... e atualmente, contraditoriamente, para muitos casos, baixamos o polegar como na Roma antiga e os esquadrões da morte - ainda que compostos também eles de hediondos criminosos (e ainda que algumas balas perdidas - ou não tão perdidas assim - deles também sobrem para a gente) - têm a nossa implícita anuência (ou mesmo explícita reverência; vá entender)... 

Mas não nos desviemos tanto, fecha parêntese dessa reflexão indireta, e voltemos ao nosso tema central.

Quanto a ele, e àquela galera lá do sinal vermelho, refletia também eu (Coxinha? Mortadela?) dia desses, quando, curiosamente, exatamente no dia seguinte li cronista da ZH (E aí?...) magicamente plagiando minha reflexão interna: seria o brasileiro o único povo do mundo a clamar por intervenção militar, por restrição da sua própria liberdade???... Caramba, somos estranhos, somos "especiais" (para o bem e para o mal), sem dúvida... mas, tanto assim??? 

 Pois com certeza não é o único país do planeta com corruptos rastejando pelos meandros do seu meio político-empresarial (há outros com um mal parelho, se não pior) e não se vê uma reação do gênero em nenhum outro lugar do mundo... por que esse apego às forças armadas por aqui então?
Isso daria uma boa pesquisa - cujos resultados talvez acabassem tendo relação com aquela outra, que mencionou recentemente que o brasileiro é o segundo pior povo no mundo no quesito capacidade de compreender o que acontece à sua volta (https://www.terra.com.br/noticias/brasil/brasil-e-2-pais-com-pior-nocao-da-propria-realidade,17c202f652c846ec7d486e0154bbb492n3u6n39f.html )

No fim das contas, creio que talvez devêssemos era estar fazendo passeata (embora nem por essa eu fosse furar sinal vermelho no meio da Avenida Medianeira na hora do rush!) e protestos contra a Lei do Veneno (que, entre outras questões no mínimo dúbias, tira do Ministério da Saúde e da Anvisa a prerrogativa de aprovar ou não o uso de um determinado novo agrotóxico, deixando isso a cargo unicamente do Ministério da Agricultura...), que está por ser aprovada, e que talvez cause mais danos diretos (ao menos à saúde) de nossos filhos e netos - pensemos neles, pois pelo visto os nossos cérebros já foram envenenados mesmo, não é mesmo!?... - do que a questão da intervenção para supostamente combater a corrupção (e até porque corruptos não deixarão de ser corruptos porque estamos fazendo passeata, certo!? Já uma pressãozinha no seu deputado/malvado favorito, seja lá qual for o partido dele, ainda mais em ano eleitoral, talvez, isso sim, surta efeito...)

Para concluir, fica primeiramente uma interessante mensagem, de fundo paradoxal, do escritor uruguaio Galeano (não querendo expor veias de nada nem de ninguém, por favor! Eu sei que o cara era um hermano mortadela, eu sei, mas esse pensamento é legal - assim como as músicas do Chico seguem legais, cara!...) "Somos o que fazemos para mudar o que somos" - ainda que correndo o risco de perder um pouco da poesia (e da graça do paradoxo) da frase, eu acrescentaria aqui que para mudar o que pensamos também (assim sendo, prometo tentar colocar em prática essa ideia se você o fizer também: isto é, vamos dar uma pensada - eu, começando pelo que escrevi acima... vai saber, né!? Como disse não confio 100% em nenhuma informação que recebo, nem (ou, muito menos) de mim mesmo - e você, enfim, no que acha que tem que repensar... trato feito?... Ah, sim: e cuidado com o que desejares, pois, para o bem ou para o mal, podes mesmo acabar conseguindo - para quem por ventura não sabe, é a conclusão do pensamento do título)

Já a outra parte dele, aquela entre parêntese, cita nada mais nada menos do que Sócrates (mazááááá! Que tal? Se queríamos uns enxertos pra alavancar o moral aqui, esta é pra acabar com chave de ouro o festival de chupação de pensamentos!!), mas, como há suspeitas tanto de coxismo (ele era de família de elite na velha Grécia...) como de mortadelismo (curintiano, né - alguém pode confundir com o Doutor, irmão do Raí... "ganharam a Arena do Lula, e tal... não, não, não: certamente mortadela!") também do velho Sóc, deixo de lambuja então essas outras reflexões (de outros dois filósofos: um, estadunidense, ou seja, automaticamente coxinha, e outro, iluminista francês, portanto obviamente mortadela - pra não dar briga; pronto) que casam entre si (embora talvez não com a nossa adorada certeza das nossas categóricas certezas!):

Voltaire: "A dúvida não é agradável, mas a certeza é absurda".

Eric Hoffer: O início do pensamento está no desacordo - não apenas com os outros, mas também conosco."




sexta-feira, 22 de junho de 2018

"Diário de um Recepcionista de Hotel Canastrão - Parte 8" (Por Diego T. Hahn)



A questão era que, a um certo ponto, eu realmente não tinha mais estímulo ali. Eu dizia que, com um mínimo de treino, um macaco poderia fazer perfeitamente aquele trabalho que eu fazia... E às vezes – lá vinha outra daquelas minhas viagens – me pegava rindo enquanto imprimia algum relatório ou carimbava algum papel e ficava imaginando mesmo um simpático símio – de terno e gravata, claro, o que dava mais graça ainda à cena – realmente pulando ali de um lado para o outro sobre o balcão da recepção, e no fim do mês feliz da vida ao receber seu cacho de bananas-salário.

Mas não eu, eu queria mais - se fosse para fazer o trabalho de um macaco, eu queria ser era como a Chita; melhor, claro, se fosse o Tarzan!, mas, enfim, eu queria ser um astro de cinema, ou algo assim, caramba: viver a vida sobre as ondas, você sabe; o meu destino é ser star!...

E, como o tempo ia passando e o meu destino parecia mesmo era não de star e sim estar ali, e aquele tal “sucesso” não chegava nunca, eu começava a me deprimir.
E, deprimido, claro, protagonizava o clássico: buscava ajuda no álcool...

Brincadeira! Quer dizer, o trago rolava solto na recepção, é verdade, especialmente de madrugada, mas era por pura zoação mesmo... uísque, vinho, cerveja... eu tinha um colega, Jaime por exemplo, que era mesmo um alcoólatra – nunca o vi trabalhar sóbrio naqueles tempos lá... 

Antes de queimar o filme do Jaime, porém, devo mencionar que teve uma certa época, na qual estava de férias da faculdade, que estabilizei por um tempo no turno da noite e deixei um outro colega de turnante. Pois nesse período trabalhávamos sempre eu e outro recepcionista e dois mensageiros. Trabalhávamos bem, talvez fôssemos os melhores que o hotel tinha naquela época nas nossas funções, mas o caso é que éramos também os mais fanfarrões e quando não havia movimento na área começávamos a zoação descerebrada, papo vai papo vem naquelas noites, fomos criando um vínculo de patifaria, e logo estávamos saindo os quatro juntos todas as noites também após o serviço. 

Éramos todos solteiros na época – um deles era o Jorge, o especialista em manobrar carros na garagem e bisturis em cirurgias cardíacas – e as noites iam longas e chegávamos trôpegos nas respectivas casas quando o sol já raiava no horizonte. Obviamente, com aquela rotina cada vez mais frequente, começamos a trabalhar com as caras amassadas, olheiras profundas, voz cavernosa... estávamos mais lentos também – brincávamos que aquilo podia ser um problema especialmente para os pacientes do Jorge – ... às vezes demorávamos a entender o que os hóspedes falavam, os mensageiros iam buscar o veículo do Seu Megane e voltavam com um para o Seu Sandero, que não estava ali (bem, ao menos eles ainda acertavam a "família", não é mesmo?)...

O que aconteceu então foi que o gerente da época, Alex, percebeu isso e logo tratou de desmanchar aquele nosso grupo: mudou os turnos de um, depois os de outro, e assim por diante, até cortar quase totalmente nossa comunicação mais direta e nossas aventuras noturnas começarem a escassear. 

Grande filho da puta aquele Alex por estragar aquele nosso animado bando!, mas, devo admitir, um filho da puta profissionalmente preciso, pois certamente salvou o bom funcionamento da recepção do hotel – e, bem, talvez também um filho da puta bom amigo, pode ter salvado igualmente nossas vidas, que, naquele ritmo de até então, pareciam destrambelhadamente começar a ir ladeira abaixo (embora nossa euforia pela diversão intensa e as gorjas, que por algum estranho motivo haviam se tornado mais frequentes naqueles tempos de vida loca, não nos deixassem perceber isso)...

Mas, fecha parêntese (para não nos queimarmos mais ainda aqui neste trecho - embora ainda haverá tempo e espaço para isso na sequência da nossa história...), e voltando ao Jaime (que pelo seu "profissionalismo" com o copo acabava fazendo a gente parecer criancinha da pré-escola do trago): Jaime costumava fazer a madrugada, mas às vezes quebrava um galho também em algum turno diurno. Era, porém, um daqueles caras que disfarçam bem a embriaguez; você a princípio não diria que ele está bebaço se não analisasse mais a fundo ou o conhecesse um pouco melhor.

Pois eu já o conhecia, após algumas noites trabalhadas junto. E quando começava a digitar algo no computador no turno da noite, logo percebia um copo repousando no balcão da recepção, bem ao meu lado; era Jaime me oferecendo – para não dizer me impondo - silenciosamente um drinque, o qual, para não fazer a desfeita, eu costumava acabar aceitando. E assim transcorríamos aquelas jornadas, fazendo pouco, quase nada, bebendo e trocando ideias sobre as coisas mais estapafúrdias possíveis. Aquilo era engraçado: com os hóspedes eu debatia política, com algum mensageiro eu falava de negócios, com outro de mulheres, todos davam pitacos sobre futebol, mas o Jaime, cara, o Jaime era difícil descrevê-lo.

 Porque ele não falava literalmente nada com nada – tanto é verdade que, daqueles tempos que convivemos por ali, não consigo lembrar de uma única frase sua com um mínimo de coerência com a realidade e a língua portuguesa, ou qualquer língua do mundo (por mais que essa quase total desconexão com o universo pudesse vir a ser engraçada para o leitor) que pudesse usar como exemplo aqui (e, você sabe, se é pra mentir/inventar coisas, paremo por aqui!...). De alguma forma, ele parecia indiferente a tudo, indiferente mesmo à vida... ele era daqueles caras que falam somente o mínimo indispensável, de uma maneira lenta e blasé, com uma voz rouca quase nunca olhando para o interlocutor e sim para algum horizonte perdido, por mais que simpatizasse com a outra pessoa – o que tornava, por algum motivo, inacreditavelmente, também ele um tanto quanto simpático e mesmo carismático (de um carisma, digamos, quase folclórico).

Pois Jaime acabou sendo mandado embora após abalroar a caminhonete de um hóspede na parede da garagem. Tenho a impressão, porém, de que aquilo não se deveu à bebida e sim ao fato de ele simplesmente não ir com a cara do dono do veículo. E nunca mais vi Jaime depois que ele foi embora do hotel.

Isso também não deixava de ser curioso: figuras como essa apareciam do nada e de repente estavam ali ao teu lado, bem fardados, passando 8 horas ali, conversando contigo, sobre de tudo um pouco, o que acabava induzindo quase inevitavelmente a uma amizade ou algo próximo disso, e de repente um belo dia eles faziam alguma cagada – ou não faziam nada, o que em alguns casos dava na mesma – e simplesmente iam embora, e você nunca mais os vê, como se eles não existissem “lá fora”, como se eles tivessem existido somente por algum tempo ali dentro do hotel, personagens criados especificamente para aquela trama.

Mas onde, afinal, se enfia esse pessoal de hotel no dia-a-dia? Até hoje procuro por alguns ex-colegas, boas pessoas, grandes amigos, mas nunca mais os encontrei, assim como Jaime... estarão enfurnados em um outro hotel? Não, não creio; depois de conquistarem a liberdade, eles não se submeteriam de novo àquilo... o europeu, por exemplo, havia acabado numa oficina mecânica – e, dizem, feliz, conversando em alemão e francês com suas repimbocas da parafuseta – , embora eu nunca mais o tenha visto.

Fosse como fosse, eu ia ficando lá, e, diabos, acreditando por vezes que eu é que fosse o personagem criado especificamente para aquela trama...

(Continua)